segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Análise 14 - Contos Escolhidos de Machado de Assis


Com mais de 200 contos publicados, o autor elevou o gênero ao patamar das obras-primas da Literatura brasileira.

Para muitos críticos, a obra de Machado de Assis poderia ser dividida em dois momentos bem distintos: as obras da juventude, com forte influência do Romantismo – que incluem os romances Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Iaiá Garcia (1878) e as coletâneas de contos intitulados Contos Fluminenses (1870) e Histórias da Meia-Noite (1873) –, e seu progressivo amadurecimento até chegar ao Realismo de suas obras da maturidade. Entre estas, as mais destacadas e consideradas são Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899). Esta fase inclui também notáveis livros de contos, publicados a partir de Papéis Avulsos (1882). 


Anote!
Os contos de maturidade de Machado de Assis têm para o gênero a mesma importância revolucionária que Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro têm para o romance na Literatura brasileira.


Entre essas coletâneas de contos poderíamos destacar, além de Papéis Avulsos,Histórias sem Data (1884), Várias Histórias (1896) e Páginas Recolhidas (1899). Machado publicou ainda inúmeros contos em jornais cariocas da época, como o Jornal das Famíliase a Gazeta de Notícias. Muitos foram incluídos posteriormente em livros e integram suaObra Completa. Alguns permaneceram praticamente inéditos até há pouco tempo, como é o caso do belo "Terpsícore".
O Realismo psicológico

Com seus contos, Machado de Assis passa a integrar a brilhante tradição de contistas da Literatura ocidental – como o russo Anton Tchecov ou o francês Guy de Maupassant – que, a partir do final do século XIX , escreveram narrativas curtas retratando momentos especiais, "fatias de vida" reveladoras do cotidiano e da psique de homens comuns. Machado de Assis fez do conto um veículo perfeito para realizar sua concepção muito particular do que seria o Realismo na Literatura. 



Anote!
Para Machado de Assis, o conto, com seu núcleo temático e narrativo reduzido e sua força expressiva altamente concentrada, serviria para flagrar aspectos psicológicos da natureza humana.

Foco narrativo
 

Nessas narrativas curtas, descobriremos os mesmos temas e os procedimentos literários (ainda mais depurados) que fazem dos romances de Machado de Assis pontos cardeais de nossa Literatura. Em "D. Paula", por exemplo, podemos encontrar uma chave de interpretação para o clássico Dom Casmurro e uma preocupação central da obra do escritor. Nesse conto sutil, a tia idosa do título tenta resolver a crise conjugal de sua sobrinha, aconselhando-a a evitar que aquele "prólogo de adultério" narrado pela jovem se transforme em "livro". D. Paula constata então que o rapaz, agente ameaçador do casamento de Venancinha, vem a ser filho de uma intensa (e igualmente adúltera) paixão de sua mocidade. Solucionado o caso da sobrinha com a reconciliação com o marido, fica para D. Paula a incômoda, inquietante e impossível de ser "resolvida" lembrança do passado. Ora, se inicialmente (como em Dom Casmurro) pensamos ser a questão central do conto um dado de enredo (o adultério), logo percebemos o interesse real do escritor: deslocar nossa atenção para o efeito que esse dado provoca na vida interior do personagem.  


Para lembrar
Nos livros de Machado de Assis, o que mais interessa não é a ação externa, o enredo, mas o modo pelo qual o externo interfere no interno, ou seja, tudo aquilo que na ação pode ser revelador da psicologia dos personagens.


Em "O Enfermeiro", o crime cometido pelo narrador contra o velho coronel não é o que o autor do texto quer destacar e sim, o sutil processo de autoconvencimento da inocência agenciado pelo personagem com o respaldo da sociedade do vilarejo. 

Um conto-síntese: "O Espelho"

Alguns contos de Machado revelam a peculiar inserção do escritor na literatura de sua época que, desgastada pelos exageros românticos, busca na objetividade e no aprofundamento psicológico uma forma de renovação. 

Em "O Espelho – Esboço de uma Nova Teoria da Alma Humana", classificado por alguns críticos como "conto-teoria", encontramos uma notável síntese da visão de mundo machadiana. Um bom exemplo é a passagem em que a personagem Jacobina expõe a um grupo de cavalheiros sua concepção sobre a natureza da alma: 


"Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas... Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro [...]".


Assim, à alma interior corresponderiam todos os nossos sentimentos, emoções e pensamentos mais íntimos e pessoais, a subjetividade enfim; a alma exterior representaria o modo pelo qual interiorizamos a imagem que os outros fazem de nós. Para ilustrar sua concepção, o personagem narra uma história de sua juventude, tratando em essência justamente de um momento em que a alma exterior eclipsou a interior ou, nos termos do conto, "O alferes eliminou o homem". 


Anote!
Machado de Assis analisa as pressões sociais de que somos vítimas. Ele critica e, implicitamente, nos alerta para os riscos de desestruturação da personalidade que o ser humano enfrenta 

ao se desligar de sua existência interior. Em "O Espelho", o ato de "vestir a farda", ou seja, de aderir integralmente ao papel social, tem caráter simbólico. 


O conto "Teoria do Medalhão" desenvolve com muita ironia as mesmas questões levantadas por "O Espelho". O narrador cede seu espaço à reprodução do diálogo entre um pai e um filho que acabara de atingir a maioridade. 


Anote!
O conto é, antes de tudo, uma lição a todo homem que almeja ter prestígio, ser reconhecido pela sociedade da qual faz parte e que elimina qualquer expressão da subjetividade em nome 

da aderência ao senso comum, à opinião da maioria, à superficialidade bem ornamentada das frases feitas.


O tom terrivelmente irônico da fala do pai revela, obviamente, a denúncia feita pelo autor por trás do conto em relação a uma sociedade burguesa medíocre e arrogante, que prega o sucesso a qualquer preço, mesmo à custa do empobrecimento da vida interior e das relações humanas.

Os impasses de uma época 

A partir do conflito básico entre alma exterior e alma interior exposto em "O Espelho", podemos perceber que boa parte dos contos (e da obra literária) de Machado de Assis reflete o tenso diálogo entre o social e o individual que está por trás da passagem da estética romântica para a estética realista. O escritor, avesso a classificações e conclusões acabadas, preferiu, por meio de suas histórias, refletir criticamente acerca dos impasses da Literatura e do homem de sua época. 


Anote!
A obra de Machado de Assis não se encaixa perfeitamente nos pressupostos estéticos do Realismo. Muitos de seus contos ("O Alienista", "A Causa Secreta" etc.) podem ser lidos como uma crítica às correntes filosóficas em voga na segunda metade do século XIX (o determinismo, o cientificismo etc.).


Em "O Alienista", o autor mostra como a ciência (encarnada em Simão Bacamarte) revela-se incapaz de compreender a complexidade tanto da mente humana como do funcionamento da sociedade. O personagem principal busca separar radicalmente loucos e sãos, tomando como sintoma de loucura qualquer expressão da subjetividade mais marcante. Além de criticar a pretensão científica de tudo explicar e classificar, Machado nos mostra como a ciência (aliada ao poder político) pode levar o homem a se perder na variedade inexplicável dos indivíduos. 

O conto "A Causa Secreta" revela o universo insuspeitado de sadismo e prazer mórbido que se esconde por trás da aparência de homem bom, prestativo e reconhecido socialmente que é Fortunato. O autor quer penetrar nos desvãos do comportamento humano que a máscara e o papel social não deixam vir à tona. 

Já o personagem Garcia é caracterizado pelo narrador de modo semelhante ao alienista Simão Bacamarte: 


"Este moço possuía em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo."


Mas é justamente essa expectativa de análise, próxima aos pressupostos científicos, que será questionada ao final do conto, quando o observador Garcia se torna objeto da observação e análise de seu anterior "objeto de estudo", ou seja, Fortunato. Na feroz sátira política ao sistema eleitoral brasileiro que se lê em "A Sereníssima República", o cônego Vargas tenta, com sucessivos experimentos, dar organização social às aranhas. O conto termina sem que essa pretensão tenha sucesso, uma vez que as facções políticas e individualidades em confronto sempre darão um jeito de burlar os sistemas eleitorais instituídos. 

Mapeando a subjetividade possível

Se em "O Espelho" a subjetividade não encontra espaço de afirmação e termina sem contornos nítidos, outros contos como "Terpsícore" e "Missa do Galo" mostram como o desejo pode abrir brechas em situações de opressão.

Em "Terpsícore", o casal pobre que luta para pagar o aluguel atrasado e evitar o despejo encontra no dinheiro ganho inesperadamente na loteria uma forma de realizar os mais legítimos anseios de beleza e prazer que a condição de pobreza sistematicamente lhes nega. A Festa de Estrondo e a dança que Porfírio e Glória promovem ao final do conto não são mostradas pelo autor como algo alienante e impróprio para pessoas que até há pouco não tinham como pagar o aluguel, mas como única forma de abrir "um hiato esplêndido na velha noite do trabalho 
sem tréguas".
"Missa do Galo" nos mostra o encontro e o tímido diálogo entre um jovem e uma senhora casada e traída pelo marido numa noite de Natal. Praticamente nada acontece objetivamente entre os dois, mas Machado de Assis parece nos querer dizer que, onde nada acontece, tudo pode estar acontecendo subjetivamente e, para que o percebamos, é preciso apurar os ouvidos e ler nas entrelinhas as marcas do desejo não-explícito.

Os mecanismos da opressão

Em contos como "O Caso da Vara" e "Pai contra Mãe", podemos perceber a intenção do autor em analisar as cruéis relações de dominação entre seres iguais, todos subjugados por um sistema político e social marcado pelo autoritarismo, mas que não hesitam em reproduzir e legitimar a opressão de que são vítimas.


Para lembrar 
Em alguns contos, o que mais interessa a Machado de Assis não é a denúncia explícita e panfletária de certos males da sociedade brasileira, como a escravidão ou a violência, mas mostrar o modo pelo qual esses males se agregam ao cotidiano das relações humanas,


Os impasses da criação artística 

Também a própria criação artística é objeto da reflexão de Machado, que mostra o quanto ela pode ser igualmente marcada pelo embate entre os desejos individuais e as pressões da sociedade. O personagem central de "Um Homem Célebre", o compositor Pestana, rejeita o sucesso fácil das polcas que compõe e que se tornam rapidamente obras populares nos salões e festas. Para ele, a grande criação artística estaria no âmbito da música clássica que, em vão, tenta compor. No entanto, o narrador descreve o momento da composição de uma das polcas como o mais pleno e espontâneo instante de criação, uma vez que elas brotam magicamente dos dedos do compositor:



"Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene."


Assim, o equívoco do personagem está em buscar por toda a vida algo fora de suas possibilidades e rejeitar o que faz melhor. O narrador resume o drama de Pestana quando diz: 


"[...] expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo."

A complexidade do real

Rio de Janeiro na época de Machado de Assis.

Talvez o que se possa guardar de mais significativo da leitura dos contos de Machado de Assis é a impossibilidade de respostas prontas e acabadas diante do mistério essencial que habita o ser humano e que responde pela motivação de muitos de seus atos. Assim, os personagens de "A Cartomante", "Singular Ocorrência" ou "Missa do Galo" querem saber, ter conhecimento pleno a respeito de alguma coisa e, para isso, recorrem ao além, ao levantamento de hipóteses ou ao próprio ato de narrar o que foi vivido. Mas, ao final, não encontrarão senão a morte, o desconhecimento das motivações humanas ou a ignorância. Para o leitor, no entanto, fica a possibilidade de conviver com o aberto, com o não-resolvido, com o fato de não se poder conhecer a totalidade de algum evento ou de alguém. Essa postura inconclusiva que o leitor deve guardar para si parece ser, de resto, propósito recorrente da obra de Machado de Assis, desde a hilária impossibilidade de definir a loucura que ressalta das páginas de "O Alienista" até a simplicidade quase ingênua do narrador de "Missa do Galo", que inicia o conto por afirmar:


"Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta."


Em uma época de teorias científicas e sociais que pretendem dar conta do real, como é o momento do Realismo na Literatura ocidental, a voz dissonante do genial Machado de Assis ousa abdicar das certezas e instaurar o universo do desconhecido que preside a alma humana. 

Vida e obra

O homem e os momentos de sua criação

A genial vocação literária de Machado de Assis manifestou-se cedo. Com 15 anos escreveu seu primeiro soneto de amor.

Do lado paterno, Joaquim Maria Machado de Assis era bisneto de escravos libertos. Os pais, trabalhadores braçais, moravam como agregados numa chácara matriarcal no Morro do Livramento, Rio de Janeiro, onde o escritor nasceu em 1839, no fim do Período Regencial. Nessa data, nasceu também Casimiro de Abreu, autor deAs Primaveras (1859). José de Alencar tinha 10 anos de idade. Três anos antes, Gonçalves de Magalhães publicara Suspiros Poéticos e Saudades, obra que continha ideias para uma Literatura romântica no Brasil. Em 1840, seria decretada a maioridade de D. Pedro II. Ainda muito jovem, Machado de Assis evita o subúrbio e procura a subsistência no centro da cidade. 

Não se sabe ao certo em que trabalhou, mas sua vocação literária manifestou-se cedo, pois estreou aos 15 anos, em 1854, com um soneto a uma mulher chamada Petronilha, no Periódico dos Pobres. No ano seguinte, publicaria os poemas "Ela" e "A Palmeira", na Marmota Fluminense, revista bimensal do livreiro Paulo Brito. Pobre como Machado, esse livreiro liderava uma roda de artistas chamada Sociedade Petalógica. Entre 1856 e 1858, Machado de Assis trabalhou como tipógrafo e revisor de imprensa, tendo sido, nessa época, protegido por Manuel Antônio de Almeida, que publicara, anos antes, Memórias de um Sargento de Milícias. No fim desse período, passou a colaborar, a convite do poeta Francisco Otaviano, no Correio Mercantil, importante jornal da época. De 1860 a 1867, trabalhou intensamente como jornalista e repórter do Diário do Rio de Janeiro, para onde fora levado por Quintino Bocaiúva. 

Nessa fase de sua vida, Machado de Assis teve atuação combativa pelas ideias progressistas. Por esse motivo seu nome foi anunciado como candidato a deputado pelo Partido Liberal. Mas ele retirou a candidatura e persistiu na ideia de ganhar a vida com as letras, iniciando-se na tradução do inglês e do francês. No fim desse período, ingressou no funcionalismo público, em que atingiria estabilidade econômica. Nessa ocasião, era amigo de José de Alencar, a pedido de quem recepcionou na imprensa da Corte o poeta Castro Alves, vindo da Bahia em 1868. 
Em 1869, Machado de Assis casou-se com Carolina Augusta Xavier de Novais, irmã de um poeta amigo seu. Teria uma vida harmoniosa com essa mulher, conforme deixa ver o soneto "A Carolina", escrito na ocasião de sua morte, em 1904. Não tiveram filhos. Em 1883, iniciou uma longa colaboração na Gazeta de Notícias, que foi um dos jornais de maior prestígio em todo o século XIX. Machado manteve aí diversas seções, das quais se destacam as crônicas de "Balas de Estalo" e "A Semana". Era então uma celebridade. Em 1896, na fundação da Academia Brasileira de Letras é unanimemente eleito o seu primeiro presidente. Machado de Assis, que sempre fora doente – era epilético –, sofreu bastante após a morte de Carolina. Não tinha parente de espécie alguma, embora contasse com amigos fiéis e a atenção de toda a sociedade. Morreu em 1908, no governo Afonso Pena, um século após a chegada de D. João VI ao Brasil.

Os dois Machados

Machado Assis (o segundo da esquerda para a direita, na primeira fila) numa das poucas reuniões a que compareceu depois de viúvo.

A obra de Machado de Assis divide-se em duas etapas muito diferentes, embora uma seja complemento da outra. A primeira é a fase de aprendizagem, na qual aparecem elementos românticos. A segunda é a de maturidade, em que predomina um tipo especial de literatura, a que se pode chamar "realismo machadiano". A primeira fase de Machado de Assis basicamente compreende: as crônicas, os ensaios e as críticas iniciais; quase todas as peças de teatro (cerca de 15); a dissertação irônica Queda que as Mulheres Têm para os Tolos (1861); as poesias de Crisálidas(1864), Falenas (1870) e Americanas (1875); os contos de Contos Fluminenses (1870) e Histórias da Meia-Noite (1873); os romancesRessurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). O livro que marca a conquista definitiva da forma e espírito próprios de Machado de Assis éMemórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em folhetins na Revista Brasileira, em 1880, então sob a direção de Nicolau Midosi. No ano seguinte, o romance sairia em volume, pela Tipografia Nacional, com algumas alterações no texto, razão pela qual a data convencional de sua edição ficou sendo 1881. A tradição didática de nossa historiografia literária tornou esse ano o marco introdutório da estética realista no Brasil, em que também Aluísio Azevedo publicou, no Maranhão, O Mulato. A segunda fase inclui: as crônicas e as peças teatrais escritas de, mais ou menos, 1877 até o final: as poesias deOcidentais (1901); os contos de Papéis Avulsos (1882), Histórias sem Data (1884), Várias Histórias (1896), Páginas Recolhidas (1899) e Relíquias da Casa Velha (1906); os romancesMemórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899),Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).


Fonte: http://vestibular.uol.com.br

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