segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Análise 32 - O Amanuense Belmiro


O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, romance escrito em primeira pessoa, estrutura-se como um diário e registra o presente e o imenso vazio existencial do protagonista. Passa a ser um relato de sua vida e de sua relação com o dia a dia, com as pessoas e com seu mundo particular.

A época


De 1930 a 1945, registra-se o segundo tempo modernista, período de consolidação do ideário de 1922 que, de forma mais sisuda, retalha e analisa a questão social do País, de norte a sul, mas também observa mais profundamente o comportamento moral e psicológico do homem. 

O romance produzido nessa fase sofre influências do realismo-naturalismo do século XIX: o período é, por isso, também conhecido como realismo crítico ou neorrealismo. Nele, é constante a reflexão sobre os problemas sociais mais marcantes, em busca da conscientização da sociedade. Produz-se, assim, uma prosa engajada, que se marca pela análise, pela crítica e pela denúncia social, sugerindo a procura de soluções para as questões apresentadas.

O criador no espelho

Amanuense significa funcionário público, encarregado da escrituração de documentos. É o que corresponde atualmente a auxiliar de escritório, um burocrata. Essa era a profissão de Belmiro, personagem central de O Amanuense Belmiro, obra do modernista Cyro dos Anjos que ganhou tradução para o francês e o inglês. Todavia, a profissão da personagem só importa como pano de fundo para que o narrador endosse a postura do indivíduo, sobretudo relativamente a seu comportamento social ou, melhor dizendo, filosófico. Os amanuenses de antigamente tinham muito boa formação intelectual e filosófica; eram poetas, cronistas e até romancistas.

O romancista Cyro dos Anjos escrevia crônicas para o jornal A Tribuna, de Belo Horizonte, com o pseudônimo de Belmiro Borba. O conjunto de suas crônicas parecia capítulos avulsos de um futuro romance, o que era cobrado por seus leitores.

Foi quando era funcionário no Palácio da Liberdade que o romancista, em dois meses de ausência do chefe, redigiu O Amanuense Belmiro. A obra recebeu grandes elogios da crítica.


A obra: um diário


A obra, de 1937, foi produzida em apenas dois meses – "de um jato", segundo o autor –, mas obteve enorme êxito na aceitação do público e da crítica. Embora o próprio Cyro declarasse ver muitos defeitos na apressada composição, absolveu-a, porque ela retrata a autenticidade daquilo que sobrevém num fluxo. Caso se considerem as palavras do escritor, O Amanuense Belmiro reflete seu alter ego.

O Amanuense Belmiro é romance escrito em primeira pessoa – tem-se, assim, um personagem-narrador e possui um tom autobiográfico. Estrutura-se como um diário: dura cerca de um ano, o de 1935. O personagem central, Belmiro Borba, é solteiro, recatado e sonhador, voltado insistentemente para a reflexão. 

Inicialmente funcionando como uma tentativa de resgatar o mundo do lugar onde Belmiro nasceu – Vila Caraíbas –, aos poucos a obra se transforma em um diário que registra o presente e o imenso vazio existencial do protagonista. Passa a ser um relato de sua vida e de sua relação com o dia a dia, com as pessoas e com seu mundo particular. Ele mora em Belo Horizonte com duas irmãs, Emília e Francisquinha, e já é funcionário público. De sua roda de amigos destacam-se Jandira, Silvano, Redelvim, Florêncio e Glicério. 


Anote!
O presente de Belmiro Borba está assentado nas reminiscências do passado, as quais interferem em todas as suas atitudes. Aos 40 anos, reconhece que nada fez de importante. O presente e o passado funcionam como um pêndulo irritante e monótono.


Embora o texto se inicie com uma situação indecifrável quanto à identificação do narrador e quanto ao tema da reunião, já se percebe a nota do escapismo, buscada na ingestão do chope:

"Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis. Florêncio propôs, então, um nono, argumentando que outro copo talvez trouxesse a 
solução geral."
A reunião ocorre numa véspera de Natal, no bar do Parque. Os amigos discutem e o narrador sugere que se despeçam, para que não haja um desfecho desagradável: está na hora do jantar. No bonde, Belmiro sente-se eufórico sob o efeito do chope. Para "surpreender as velhas", tenta entrar em casa disfarçadamente, mas a irmã Emília, que está no quarto com Francisquinha, ouve e resmunga: "O Excomungado já vem!". O narrador resolve provocá-las, e Emília o chama de doido. No corredor, Tomé, o papagaio, repete "Excomungado!" e arrepia-se todo, ensaiando uma agressão. 


Para lembrar
As duas irmãs passam horas no quarto grande, fazendo renda de bilro; Francisquinha não faz nada direito, mas Emília lhe dá aquela ocupação para que ela se mantenha quieta. Não sabem comportar-se socialmente: como era impossível ao "velho Borba" e à "velha Maia" dar a elas "uma educação condigna", viveram sempre na fazenda, "como bicho do mato, entre o pessoal de serviço". Emília era apenas esquisita, mas Francisquinha, "perturbada de nascença", piorava a cada dia. Apesar de terem demorado a acostumar-se à vida na casa do narrador e a ele próprio, ele afirma que "encheram a minha vida".


Refúgio no intelecto

Belmiro busca a solução dos problemas reais no intelecto. É Natal e ele, sentado no alpendre de sua casa, vê os transeuntes e lembra-se de tempos passados; tinha frustrado os planos paternos para ele. O pai desejava que ele fosse agrônomo, cuidasse da terra, da fazenda, mas ele seguiu outros rumos. Tornou-se um burocrata, um amanuense, com gosto pela literatura (a mãe alimentava o desejo secreto de vê-lo "na carreira das letras", dizendo que ele puxara aos Maias e não aos Borbas). Os vizinhos saem para a Missa do Galo e ele volta ao presente; cita o poeta Carlos Drummond de Andrade, a quem admira: 
"Stop
A vida parou
Ou foi o automóvel?
"


Para lembrar
"Cota Zero" é um micropoema de Drummond que, aproveitando e contrariando a estética das vanguardas europeias, apresenta a síntese da situação a que chega o homem escravizado à máquina e ao progresso. É texto de reflexão, o que bem mostra o espírito de Belmiro Borba.


Belmiro percebe o quanto sua vida é rotineira e insignificante e conclui que há nele um homem que sofre e um que "analisa e estiliza esse sofrimento", registrando-o no papel: "O homem espia o homem, inexoravelmente". 


Fase de "aura romântica"

Já é o carnaval de 1935: dois meses se passaram desde que Belmiro começou a "registrar, no papel, alguns fragmentos" de sua vida. 

Na rua, Belmiro é arrastado por um cordão de foliões e acaba entrando no salão de um clube. Já "alto" pela bebida e pelo éter que cheirara, tem a imagem de uma moça (Carmélia) que associa a Camila, uma namorada de infância (o mito de Arabela). Passa por uma fase de "aura romântica" e escreve pouco.

Belmiro pretende retomar suas anotações e é surpreendido pelas doenças das irmãs: Emília com crise de gota ciática e Francisquinha com o agravamento de sua loucura. Passados os piores dias, volta a escrever. Revê, à janela de uma casa, a moça do carnaval, e fica transtornado. Sua amiga Jandira o visita e espanta-se com sua "cara de alma de outro mundo".
Apaixonado, Belmiro tenta escrever um poema. Jandira consegue um emprego e o grupo de amigos vai comemorar em sua casa. Ela conta que um velho rico a pedira em casamento e que não pretende aceitar, mas está cansada de não ter nenhum apoio e só contar consigo mesma. Precisa de um homem, "com urgência". Belmiro diz-lhe que ela ainda é jovem e bonita, e na despedida ela o chama de "analgésico", o que o faz pensar depois.


Para lembrar
Belmiro é dotado de forte senso lírico, de uma percepção extremamente sensível. Ao mesmo tempo, é analista de si e dos outros ao seu redor. Alternam-se assim, na personagem, os dois níveis, equilibrando-se capítulo a capítulo. Como diz o crítico Antonio Candido: "Belmiro é o homem que chegou ao estado de paralisia por excesso de análise".

Belmiro não pensa mais em Carmélia (Arabela) desde a reunião de Jandira. Mas, lendo o jornal, vê o anúncio da missa de 30 dias do pai dela e volta à paixão. Resolve tentar chegar a Carmélia por intermédio de Glicério, que freqüenta pessoas da alta sociedade. Vão à casa de um senador – o senador Furquim, protetor de Glicério – para jogar pôquer e Belmiro isola-se num canto, para refletir. Chega à conclusão de que o tempo é inexorável.

Saldo da vida

A viagem de Glicério ao Rio de Janeiro incomoda Belmiro, porque lhe dificultará ainda mais receber informações de Carmélia. Ainda não teve coragem de contar ao amigo sobre sua paixão, e fica esperando receber algum tipo de informação ao acaso. Na ausência de Glicério, Belmiro vai à casa de Silviano; Joana, a esposa, diz que ele não está e Belmiro o aguarda. Folheia alguns livros e descobre o diário do amigo; lê e conclui que Silviano é estranho e complexo. Silviano chega, alegre de chope, e conversam.

São 25 de agosto, aniversário de Belmiro: faz 38 anos. Num balanço de sua vida, conclui que o saldo é bem negativo. O jantar é festivo: Emília preparou peru, como é costume da família nos aniversários, há vinho do Rio Grande e ela não coloca o papelão que usa às refeições para não ver Belmiro. Ele se sente feliz e comovido. Os amigos chegam e a comemoração continua com uísque e cerveja.

O narrador comenta uma conversa com Redelvim, envolvido em atividades políticas, que o critica por pensar apenas em sua pele de amigo, e não no movimento. Belmiro conclui que Redelvim parece mais anarquista que comunista.

Glicério volta e espanta-se com a mudança de atitude de Belmiro, que tinha sentido diminuir seu interesse por Carmélia e por isso se afasta um pouco do amigo. Reaproximam-se e Belmiro conta-lhe a história de sua paixão, surpreendendo o amigo, que lhe diz que, se soubesse, já o teria levado à casa da moça, uma jovem de muitas qualidades. O narrador responde-lhe que já não está tão entusiasmado e o amigo diz que, se mudar de ideia, é só falar com ele.

Belmiro procede a várias digressões sobre a vida, sobre seu passado, sua família e o tempo. 

Anote!
A atitude do narrador, seu estilo de narrar, seu gosto por digressões remetem à obra de Machado de Assis, cuja influência se nota claramente no livro.


Perda em família

Francisquinha, a irmã "perturbada de nascença", piora e Belmiro a interna no Instituto dos Alienados, atitude que toma só quando o estado dela fica insustentável. Sua vida volta à rotina do escritório e aos encontros com os amigos. 

Francisquinha volta para casa, mas tem uma recaída e sai quase nua, numa madrugada de chuva. Morre uma semana depois, de pneumonia. Emília cuida de tudo e revela ter grande força moral; consola-se dizendo que Deus chamou a irmã. Belmiro passa por uma fase em que as imagens de Carmélia e Camila se misturam em sua cabeça. 


Repressão política

Redelvim está preso e incomunicável, Belmiro fica sabendo por Jandira. Os dois vão à delegacia falar com o delegado e este pede a Belmiro que retorne depois sozinho, advertindo-o de que de nada lhe adiantará fugir. Belmiro vai à delegacia, conforme combinado, e o delegado o elogia por sua pontualidade e sensatez; ele fica sabendo que fora seguido e observado. O delegado o retém para que vasculhem sua casa em busca de algo suspeito, já que ele, sem saber do que se tratava, tinha levado uma encomenda a Redelvim: eram livros extremistas. Ele pede ao delegado que a busca seja feita pelo investigador Parreiras, conhecido seu, para não assustar Emília.


Às 11 da noite, Belmiro é levado ao delegado, que está com seu diário nas mãos: é sua salvação, pois o que está escrito ali o livra de qualquer suspeita. O delegado entrega-lhe o diário e dispensa-o, aconselhando-o a ser mais direto e menos platônico. Pede-lhe que, se um dia publicar suas memórias, mande um exemplar.


O grupo de amigos se desfaz 

Em dezembro, Belmiro vê no jornal a notícia do próximo casamento de Carmélia e Jorge. Glicério está despeitado, mas Belmiro o distrai. O amigo Silviano, casado com Joana, confidencia-lhe que está de caso com uma nova conquista. 

Redelvim é libertado. Belmiro vai à casa de Jandira, que fica contente com a notícia. Em 21 de dezembro, o amigo o procura para agradecer-lhe o apoio. O narrador vai à formatura de Glicério, que não sabe o que vai fazer com seu diploma. Passa-se o Natal como sempre, sem novidades. O narrador conta que agora tem mais um amigo: Carolino, que freqüenta sua casa e se tornara íntimo de Emília. Pensa em ir ao 
Rio de Janeiro.

Já no Rio, Belmiro encontra um homem que conhecera na casa de Jandira e conversam; ele conta que desistira da moça: "Dei o fora. Deixei-a com suas literaturas...". Belmiro assiste à partida dos noivos Carmélia e Jorge e questiona-se sobre a verdadeira razão de sua ida ao Rio. De volta a casa, constata que era melhor não ter saído: é lá que está a verdade. Nada mudara naqueles 12 anos, apenas a ausência de Francisquinha se faz sentir; tudo está no seu lugar. Conclui que deveria conformar-se com isso.

Anote! 
No dizer de Antonio Candido, Belmiro é "empurrado para o refúgio que lhe resta – o passado – uma vez que o presente lhe escapa das mãos". Entretanto, não é daí que lhe vem a solução, pois a relação entre os dois pólos não lhe esclarece a existência atual. Entregue ao presente, então, Belmiro não o aproveita; instala-se, portanto, o processo ambíguo: viver–pensar–pensar–viver.


Glicério avisa que vai sair da repartição, porque seu protetor, o senador Furquim, arrumara-lhe uma comissão com o advogado-geral do Estado. Belmiro lamenta, pois já está acostumado a ele. Termina o capítulo com a constatação de que só ele permanece como está, enquanto os outros mudam.

Do grupo inicial de amigos, além do próprio Belmiro, permanecem apenas Florêncio e Silviano – Jandira afasta-se cada vez mais e Redelvim voltou às suas atividades. O narrador conclui que já não tem o que escrever. Vai à casa de Jandira e constata que, embora ela tenha mudado muito, continua interessante e desejável. Pensa em propor-lhe casamento, mas desanima: "Ora, que tolice! Alguém me quer? Quem poderia casar-se comigo morreu há anos em Vila Caraíbas". 


Vida e obra


Cyro dos Anjos nasceu em Montes Claros, Minas Gerais, em 5 de outubro de 1906. Lá passou a infância e parte da adolescência. Formado em Direito em Belo Horizonte, voltou à capital após tentar a advocacia em Montes Claros e dedicou-se ao funcionalismo público e à imprensa. Em 1946, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se tornou funcionário da Justiça e, mais tarde, diretor do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (Ipase). Entre 1952 e 1955, exerceu a função de leitor de Estudos Brasileiros no México e em Portugal. Ocupou a cadeira número 24 da Academia Brasileira de Letras, em substituição a Manuel Bandeira, e morreu em 3 de agosto de 1994. 

Na literatura, Cyro dos Anjos teve influência de Eça de Queirós e Aluísio Azevedo. É clara também a influência de Machado de Assis, principalmente no que diz respeito à sondagem psicológica, mental da personagem, ao exame da realidade e seus conflitos, à preocupação com a vida e o tempo interior e à linguagem elegante, refinada, marcada pela concisão de estilo. A ponto de Carlos Drummond de Andrade dizer dele: "Cyro dos Anjos figura hoje entre os quatro ou cinco escritores de ficção que realmente escrevem, no Brasil. A maioria, mesmo assistida por imaginação e ideias, não domina o instrumento".

Sua obra reúne, além de O Amanuense Belmiro (1937), Abdias (romance, 1945), A Criação Literária (ensaio, 1954), Montanha (romance, 1956), Explorações no Tempo (memórias, 1963), Poemas Coronários (poesia, 1964), A Menina do Sobrado (memórias, 1979)

Fonte: http://vestibular.uol.com.br

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