Em Angústia (1936), Graciliano Ramos aprofunda a técnica do narrador em primeira pessoa utilizada em seus romances anteriores (Caetés, 1933, e São Bernardo, 1934), mas a leva às últimas consequências. O fluxo da consciência do narrador invade toda a narrativa.
A realidade em três planos
Angústia, publicado em 1936, é o livro mais complexo de Graciliano Ramos no que diz respeito aos recursos técnicos utilizados. Nessa obra, a percepção da realidade transcende o Naturalismo: a realidade é captada em fragmentos e deformada pelas disposições mórbidas de um narrador, Luís da Silva, o protagonista do romance. Dessa forma, a percepção da realidade é estilhaçada e converge para três planos: a realidade objetiva; a evocação do passado e a realidade deformada pela visão subjetiva do narrador. A realidade objetiva é captada por meio da descrição, em que se percebe alguma saliência naturalista, mas a subjetividade do narrador invade a narrativa o tempo todo, deformando essa mesma realidade a partir de uma linguagem expressionista, uma atmosfera de pesadelo e alucinação. Os sentidos se confundem nas mais variadas associações (ruídos, visões, lembranças). Em Angústia, Graciliano Ramos aprofunda certos aspectos que já estão presentes em seus romances anteriores (Caetés e São Bernardo), como a tensão entre o ser e o meio social. Em Angústia, porém, a tensão e a ruptura entre a realidade subjetiva do narrador Luís da Silva e a realidade que lhe é exterior chega ao paroxismo, ao auge. Por trás da máscara social de Luís da Silva, um simples funcionário público com veleidades intelectuais (é escritor e possui alguns manuscritos guardados), vai como que se desnudando, por meio de seu relato, o seu universo interior: ou seja, por trás do ser social, preso às convenções e às aparências, há um ser subterrâneo, selvagem, preso aos instintos e desejos mais profundos. Esse ser subterrâneo vai, aos poucos, dominando Luís da Silva e intensificando um sentimento de abjeção que ele sente em relação aos outros e a si mesmo, até chegar às vias do homicídio e do aniquilamento moral e social.
Narrador suplanta a realidade
No livro , a problemática interna do narrador se sobrepõe à realidade objetiva. As pessoas, o ambiente e os objetos se dissolvem em uma realidade de contornos pouco nítidos: há escuridão, névoa, sons que se dispersam, imagens que se associam em um embaralhar de lembranças e sensações. O narrador guarda dos acontecimentos apenas fragmentos, pedaços de realidade. Em seus devaneios, há constantes alusões a bichos, que simbolizam a morbidez de seus estados anímicos: cobras, que surgem de suas evocações do passado, funcionam como uma espécie de símbolo de seus impulsos de morte e frustração sexual; os ratos, que habitam aos montes a casa do protagonista, associam-se ao sentimento de repulsa que ele sente por si mesmo e pelos outros. Os sons e as imagens ligadas ao presente e ao passado se entrecruzam, num embaralhamento dos sentidos. De sua casa, o personagem ouve os ruídos que vêm da rua ou das casas vizinhas: vozes, lamentos, barulho de objetos, água escorrendo. Os objetos à sua volta lhe trazem lembranças do passado, misturam-se aos seus instintos, aos seus desejos mais profundos. Portanto, em Angústia, o narrador abre as comportas de seu universo interior. Esse transbordamento do estado psicológico do narrador imprime ao romance uma atmosfera de delírio, de pesadelo. As imagens, os sons, as lembranças e os sentimentos se associam das mais variadas formas. Daí o aspecto fragmentário da narrativa: essas associações se repetem, tornando a narrativa enviesada, cheia de idas e vindas. Desse modo, o romance é uma profunda sondagem dos elementos mais recônditos da alma humana.
Angústia, publicado em 1936, é o livro mais complexo de Graciliano Ramos no que diz respeito aos recursos técnicos utilizados. Nessa obra, a percepção da realidade transcende o Naturalismo: a realidade é captada em fragmentos e deformada pelas disposições mórbidas de um narrador, Luís da Silva, o protagonista do romance. Dessa forma, a percepção da realidade é estilhaçada e converge para três planos: a realidade objetiva; a evocação do passado e a realidade deformada pela visão subjetiva do narrador. A realidade objetiva é captada por meio da descrição, em que se percebe alguma saliência naturalista, mas a subjetividade do narrador invade a narrativa o tempo todo, deformando essa mesma realidade a partir de uma linguagem expressionista, uma atmosfera de pesadelo e alucinação. Os sentidos se confundem nas mais variadas associações (ruídos, visões, lembranças). Em Angústia, Graciliano Ramos aprofunda certos aspectos que já estão presentes em seus romances anteriores (Caetés e São Bernardo), como a tensão entre o ser e o meio social. Em Angústia, porém, a tensão e a ruptura entre a realidade subjetiva do narrador Luís da Silva e a realidade que lhe é exterior chega ao paroxismo, ao auge. Por trás da máscara social de Luís da Silva, um simples funcionário público com veleidades intelectuais (é escritor e possui alguns manuscritos guardados), vai como que se desnudando, por meio de seu relato, o seu universo interior: ou seja, por trás do ser social, preso às convenções e às aparências, há um ser subterrâneo, selvagem, preso aos instintos e desejos mais profundos. Esse ser subterrâneo vai, aos poucos, dominando Luís da Silva e intensificando um sentimento de abjeção que ele sente em relação aos outros e a si mesmo, até chegar às vias do homicídio e do aniquilamento moral e social.
Narrador suplanta a realidade
No livro , a problemática interna do narrador se sobrepõe à realidade objetiva. As pessoas, o ambiente e os objetos se dissolvem em uma realidade de contornos pouco nítidos: há escuridão, névoa, sons que se dispersam, imagens que se associam em um embaralhar de lembranças e sensações. O narrador guarda dos acontecimentos apenas fragmentos, pedaços de realidade. Em seus devaneios, há constantes alusões a bichos, que simbolizam a morbidez de seus estados anímicos: cobras, que surgem de suas evocações do passado, funcionam como uma espécie de símbolo de seus impulsos de morte e frustração sexual; os ratos, que habitam aos montes a casa do protagonista, associam-se ao sentimento de repulsa que ele sente por si mesmo e pelos outros. Os sons e as imagens ligadas ao presente e ao passado se entrecruzam, num embaralhamento dos sentidos. De sua casa, o personagem ouve os ruídos que vêm da rua ou das casas vizinhas: vozes, lamentos, barulho de objetos, água escorrendo. Os objetos à sua volta lhe trazem lembranças do passado, misturam-se aos seus instintos, aos seus desejos mais profundos. Portanto, em Angústia, o narrador abre as comportas de seu universo interior. Esse transbordamento do estado psicológico do narrador imprime ao romance uma atmosfera de delírio, de pesadelo. As imagens, os sons, as lembranças e os sentimentos se associam das mais variadas formas. Daí o aspecto fragmentário da narrativa: essas associações se repetem, tornando a narrativa enviesada, cheia de idas e vindas. Desse modo, o romance é uma profunda sondagem dos elementos mais recônditos da alma humana.
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Enredo
Angústia é o relato de Luís da Silva, um homem solitário, amargo e insatisfeito. É um simples funcionário público. Nas horas vagas, dedica-se ao ofício de escritor. Mora no subúrbio de Maceió com uma criada, Vitória, um papagaio e um gato. Seus melhores amigos são: Moisés, que lhe vende mercadorias a prestação e gosta de pregar a revolução operária; Pimentel, colega da repartição pública e Seu Ivo, um velho mendigo que o visita para pedir comida.
O cotidiano de Luís da Silva é simples e mesquinho, dividido entre o trabalho na repartição pública, as tardes no quintal, lendo romances medíocres, e a visita dos amigos Moisés, Pimentel e Seu Ivo. Esporadicamente, passeia pela cidade, vai ao Café, onde a sua maior distração é ouvir a conversa dos frequentadores, ou vai ao Instituto Histórico, onde se aborrece com leituras de sonetos, recitais de música e muita retórica vazia.
Marina
Em uma das tardes em que está lendo, entediado, um dos habituais romances, avista, no quintal vizinho, uma jovem, Marina, que o atrai profundamente. Faz amizade com a jovem e, em poucos dias, estão namorando. Luís da Silva apaixona-se por Marina e a pede em casamento. Mas Marina é uma mulher fútil, ciosa de sua beleza juvenil, cheia de vaidade e ambição: inicialmente, aceita o pedido de casamento, mas suas aspirações estão longe da vida modesta que Luís da Silva pode oferecer-lhe. Decidido terminantemente a casar, Luís da Silva entrega à namorada suas parcas economias para a compra de um enxoval que o pobre homem jamais verá: o dinheiro é quase todo gasto em meias de seda e pó de arroz. Marina quer um casamento de gente rica, quer a casa cheia de tapetes e outros luxos.
Ciúme
Entretanto, em uma das visitas ao Instituto Histórico, Luís da Silva conhece Julião Tavares. Desde o início, o protagonista nutrira uma indisfarçável antipatia por Julião Tavares, homem rico, de uma elegância superficial e esnobe, com uma fala cheia de retórica e patriotismo. Porém, mesmo contra a vontade de Luís da Silva, o homem passa a frequentar constantemente sua casa. É nessas visitas que Julião Tavares conhece Marina e passa a assediá-la. Marina se deixa seduzir sem dificuldade e Luís da Silva, tomado pelo ciúme e pelo sentimento de derrota, deixa-se arrastar para um abismo interior sem volta.
Assassinato
Vários acontecimentos, como a gravidez de Marina (que esperava um filho de Julião Tavares), vão aumentando o ódio que Luís da Silva sente por ele. Para complicar a situação, Seu Ivo lhe dá uma corda de presente. Essa corda lhe inspira vários devaneios associados à ideia de morte e assassinato. Em uma noite de sofrimentos e delírios, Luís da Silva persegue o rival e o estrangula com aquela mesma corda que lhe fora presenteada. Depois de uma longa doença, causada pelo abalo nervoso que o assassinato lhe provocara, Luís da Silva conta sua própria história.
Um romance de confissão
Angústia é um romance de confissão, escrito em primeira pessoa. Luís da Silva é o que podemos chamar de narrador-protagonista. Todos os fatos são narrados segundo a visão desse narrador. Essa técnica é profundamente explorada no romance: toda a narrativa é permeada pelo fluxo de consciência do narrador. É o que poderíamos chamar, apesar da imprecisão do termo, de romance psicológico.
A situação trágica vivida pelo protagonista e o seu desespero interior se adaptam perfeitamente a esse tipo de narrativa: o narrador, ainda pouco afastado dos fatos que narra e das sensações que estes lhe causam, sente necessidade da confissão. Dessa forma, toda a narrativa pode ser compreendida como um longo monólogo interior, uma confissão que não visa um interlocutor e surge como uma profunda necessidade do narrador.
Sobre a forma como a técnica da narrativa em primeira pessoa é explorada em Angústia, diz o crítico Antonio Candido, comparando essa obra com os romances anteriores de Graciliano Ramos, também escritos em primeira pessoa:
"Como em Caetés e São Bernardo, a narrativa é na primeira pessoa; mas só aqui podemos falar propriamente em monólogo interior, em palavras que não visam interlocutor e decorrem de necessidade própria." | ||
Personagens
O narrador e seu duplo Luís da Silva, o narrador e protagonista de Angústia, é um indivíduo frustrado, tímido, solitário e impotente, impossibilitado de adaptar-se a um meio social que o enoja e o deprime. Julião Tavares, seu rival, é o seu oposto, ousado, rico, galanteador, respeitado socialmente. Há, entre esses dois personagens, uma espécie de jogo de espelhos: Julião Tavares encarna a metade que falta a Luís da Silva. Essa identificação às avessas desarticula ainda mais os fios tênues do universo mental de Luís da Silva. Chega a um ponto em que, morbidamente, Luís da Silva se vê esmagado pela presença cada vez mais onipotente de seu rival, como se Julião Tavares preenchesse o próprio espaço que lhe cabe no mundo. Para entender melhor esse aspecto, veja este trecho, em que o narrador Luís da Silva se refere ao seu rival:
O narrador e seu duplo Luís da Silva, o narrador e protagonista de Angústia, é um indivíduo frustrado, tímido, solitário e impotente, impossibilitado de adaptar-se a um meio social que o enoja e o deprime. Julião Tavares, seu rival, é o seu oposto, ousado, rico, galanteador, respeitado socialmente. Há, entre esses dois personagens, uma espécie de jogo de espelhos: Julião Tavares encarna a metade que falta a Luís da Silva. Essa identificação às avessas desarticula ainda mais os fios tênues do universo mental de Luís da Silva. Chega a um ponto em que, morbidamente, Luís da Silva se vê esmagado pela presença cada vez mais onipotente de seu rival, como se Julião Tavares preenchesse o próprio espaço que lhe cabe no mundo. Para entender melhor esse aspecto, veja este trecho, em que o narrador Luís da Silva se refere ao seu rival:
"Derramava-se no bonde e, se alguém lhe tocava as pernas, desenroscava-se com lentidão e lançava ao importuno um olhar duro. Eu encolhia-me, reduzia-me e, em caso de necessidade, sentava-me com uma das nádegas." | ||
Diante de uma mistura crescente de repulsão, nojo e secreta inveja, vai amadurecendo, no inconsciente de Luís da Silva, o impulso de matar e destruir. Até que Luís da Silva chega às vias de fato e estrangula o rival.
Simbolicamente, o assassinato surge como uma espécie de necessidade de reequilíbrio: para o protagonista, não havia como viver à sombra daquela projeção sua às avessas. Para Luís da Silva, não havia como voltar atrás, ele teria de ir até o fim nessa luta contra o outro – que era, na verdade, uma luta contra si mesmo. Ou seja, Julião Tavares funciona como uma projeção das frustrações, dos recalques e dos desejos reprimidos de Luís da Silva.
Simbolicamente, o assassinato surge como uma espécie de necessidade de reequilíbrio: para o protagonista, não havia como viver à sombra daquela projeção sua às avessas. Para Luís da Silva, não havia como voltar atrás, ele teria de ir até o fim nessa luta contra o outro – que era, na verdade, uma luta contra si mesmo. Ou seja, Julião Tavares funciona como uma projeção das frustrações, dos recalques e dos desejos reprimidos de Luís da Silva.
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Seres sem perspectiva
Para analisar os personagens do livro, não podemos esquecer que eles são apresentados segundo a visão do narrador Luís da Silva. Na maneira como apresenta os personagens, ele imprime toda a sua visão de mundo, seus sentimentos, seus desejos, suas angústias.
Luís da Silva é um inadaptado. Daí o motivo que as pessoas, em seu relato, são vistas em toda a sua miséria e brutalidade, quase reduzidas à animalidade. Por isso, os seres humanos são geralmente associados ao que há de mais instintivo e torpe: à sexualidade, à escatologia, à luta brutal pela sobrevivência, ao orgulho, à miséria e à morte. Há, portanto, uma profunda amargura na maneira como o narrador Luís da Silva encara seu semelhante. Os personagens de Angústia são seres sem perspectiva, entorpecidos pela vida.
Observe!
Veja como, no trecho seguinte, o narrador Luís da Silva reduz o ser humano à sua animalidade:
"[...] Sinhá Germana concebia e paria no couro de boi, a que o atrito e a velhice tinham levado o cabelo. Quitéria engendrava filhos no chão, debaixo das catingueiras, atrás do curral. E despejava-os na esteira de Isidora, em partos difíceis. Crias de cores e idades diferentes espalhavam-se por aquela ribeira..." | ||
É interessante ainda observar, no trecho acima, como é enfocada a diferença de classe social entre Quitéria e Sinhá Germana: Sinhá Germana paria no couro de boi; Quitéria, por outro lado, paria os filhos no chão, debaixo das catingueiras.
Percepção de tempo e espaço
Tempo
Sob o ponto de vista do tempo físico, os fatos que motivam a narrativa de Luís da Silva transcorrem no intervalo de um ano. Durante esse intervalo de tempo, Luís da Silva conhece Marina; apaixona-se; perde a namorada, que se deixa envolver pelos galanteios de Julião Tavares, e finalmente comete o crime.
"Foi entre essas plantas que, no começo do ano passado, avistei Marina pela primeira vez, suada, os cabelos pegando fogo", diz o narrador. É justamente a partir desse episódio que o narrador começa a contar a sua história, pelo menos no que se refere aos acontecimentos cruciais da narrativa. Sob esse mesmo viés de análise, é possível constatar que Luís da Silva começa a narrar a sua história 30 dias após o restabelecimento de seu estado febril causado pelo crime: "Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente", diz o narrador, na primeira frase do livro.
Nas primeiras páginas do romance, o narrador refere-se ao período que lhe está mais próximo do momento em que narra a história. Só depois, a partir da cena em que ele conhece Marina, ele retorna aos acontecimentos que motivaram o seu relato.
Esse seria o tempo dos acontecimentos que compõem o enredo do romance. No entanto, mais que o enredo, o que importa em Angústia é a vida interior e a análise psicológica do narrador Luís da Silva. Desse modo, predomina no romance o tempo psicológico. O tumulto psicológico do narrador acaba confundindo passado e presente. As lembranças do narrador invadem o presente, fundindo, por meio das mais variadas associações, o presente e o passado.
Embora os acontecimentos cruciais da narrativa decorram no intervalo de um ano, o narrador nos remete a fatos ocorridos na sua infância e juventude. Desse modo, o tempo se estilhaça. E, por outro lado, não obstante as constantes evocações do passado, o tempo faz um movimento circular: a narrativa começa 30 dias após o restabelecimento de Luís da Silva e termina nos momentos mais intensos de febre e delírio, ocorridos em consequência do crime. Ou seja, a noção de tempo não obedece ao padrão lógico de continuidade temporal.
Essa tendência a estilhaçar o tempo e não obedecer aos padrões lógicos de percepção temporal é muito comum no romance contemporâneo. Muitos a vêem como um reflexo do mundo moderno: com o avanço da tecnologia e da sociedade de consumo, o homem teria perdido a sua identidade com o mundo, resultando em uma percepção conturbada de tempo e espaço.
Tempo
Sob o ponto de vista do tempo físico, os fatos que motivam a narrativa de Luís da Silva transcorrem no intervalo de um ano. Durante esse intervalo de tempo, Luís da Silva conhece Marina; apaixona-se; perde a namorada, que se deixa envolver pelos galanteios de Julião Tavares, e finalmente comete o crime.
"Foi entre essas plantas que, no começo do ano passado, avistei Marina pela primeira vez, suada, os cabelos pegando fogo", diz o narrador. É justamente a partir desse episódio que o narrador começa a contar a sua história, pelo menos no que se refere aos acontecimentos cruciais da narrativa. Sob esse mesmo viés de análise, é possível constatar que Luís da Silva começa a narrar a sua história 30 dias após o restabelecimento de seu estado febril causado pelo crime: "Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente", diz o narrador, na primeira frase do livro.
Nas primeiras páginas do romance, o narrador refere-se ao período que lhe está mais próximo do momento em que narra a história. Só depois, a partir da cena em que ele conhece Marina, ele retorna aos acontecimentos que motivaram o seu relato.
Esse seria o tempo dos acontecimentos que compõem o enredo do romance. No entanto, mais que o enredo, o que importa em Angústia é a vida interior e a análise psicológica do narrador Luís da Silva. Desse modo, predomina no romance o tempo psicológico. O tumulto psicológico do narrador acaba confundindo passado e presente. As lembranças do narrador invadem o presente, fundindo, por meio das mais variadas associações, o presente e o passado.
Embora os acontecimentos cruciais da narrativa decorram no intervalo de um ano, o narrador nos remete a fatos ocorridos na sua infância e juventude. Desse modo, o tempo se estilhaça. E, por outro lado, não obstante as constantes evocações do passado, o tempo faz um movimento circular: a narrativa começa 30 dias após o restabelecimento de Luís da Silva e termina nos momentos mais intensos de febre e delírio, ocorridos em consequência do crime. Ou seja, a noção de tempo não obedece ao padrão lógico de continuidade temporal.
Essa tendência a estilhaçar o tempo e não obedecer aos padrões lógicos de percepção temporal é muito comum no romance contemporâneo. Muitos a vêem como um reflexo do mundo moderno: com o avanço da tecnologia e da sociedade de consumo, o homem teria perdido a sua identidade com o mundo, resultando em uma percepção conturbada de tempo e espaço.
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Espaço: cisão entre o ser e o mundo
Quanto ao espaço, é preciso salientar que o narrador Luís da Silva vive um profundo conflito de identidade entre o mundo urbano e o mundo rural.
Luís da Silva mora no subúrbio de Maceió, em um casebre de aluguel, próximo de uma usina elétrica, num meio social pobre e decadente. Assim ele descreve a cidade:
"Bairro miserável, casas de palha, crianças doentes. Barcos de pescadores, as chaminés dos navios, longe." | ||
Ou seja, Luís da Silva sente-se sufocado pelo espaço à sua volta, a casa pobre, infestada de ratos, a rua suja em que mora:
"Tudo feio, pobre, sujo. Até as roseiras eram mesquinhas: algumas rosas apenas, miúdas. Monturos próximos, águas estagnadas, mandavam para cá emanações desagradáveis." | ||
Desse modo, o personagem vive em constante conflito com a realidade que o cerca e se entrega às lembranças da infância: a casa do avô, a fazenda com seus bichos, a preta Quitéria, o poço da pedra. Não obstante, também as imagens do passado são de miséria e decadência:
"Dez ou doze reses, arrepiadas no carrapato, envergavam o espinhaço e comiam o mandacaru que Amaro vaqueiro cortava nos cestos [...] Um carro de bois apodrecia debaixo das catingueiras sem folhas." | ||
Então, de um lado, vemos um espaço urbano pobre e miserável; de outro, um espaço rural tomado pela decadência. Em qualquer um desses planos, há uma cisão entre o personagem e o mundo. Há como que uma fenda entre Luís da Silva e o espaço
que o cerca.
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Referências ao contexto histórico-social
A narrativa de Luís da Silva faz uma série de referências ao contexto histórico-social em que se insere.
• A decadência do avô, antigo senhor de escravos, refere-se ao período de modernização do sistema produtivo ocorrido no Brasil no final do século XIX, que teve como consequência o declínio de setores ainda ligados à produção artesanal, como a produção de açúcar nos engenhos.
• A constante lembrança de cangaceiros nos remete ao fenômeno do chamado "banditismo social". Ocorrido entre 1870 e 1940, tal fenômeno, típico do Nordeste, foi motivado, entre outros fatores, pela miséria decorrente da seca e da decadência de certos setores produtivos (como a já mencionada produção de cana-de-açúcar) e pelos conflitos entre famílias (ocasionados em função da Lei da Herança, segundo a qual, com a morte dos proprietários, seus bens eram herdados pelo filho mais velho).
• Por fim, os personagens Julião Tavares e Moisés representam o embate de tendências ideológicas no Brasil durante as primeiras décadas deste século: Julião Tavares representa o "beletrismo" – a tendência de cultivar as belas-letras – e a retórica nacionalista, resquício ainda dos ideais positivistas que nortearam os primeiros anos da República; Moisés representa a entrada das ideias socialistas em certos meios sociais, sobretudo no proletariado urbano e em setores intelectuais. O fato de Moisés sentir-se constantemente perseguido pela polícia é uma referência direta aos conflitos entre os socialistas e o governo Vargas, como na Intentona Comunista (1935) e nas várias prisões de pessoas consideradas subversivas.
• Por fim, os personagens Julião Tavares e Moisés representam o embate de tendências ideológicas no Brasil durante as primeiras décadas deste século: Julião Tavares representa o "beletrismo" – a tendência de cultivar as belas-letras – e a retórica nacionalista, resquício ainda dos ideais positivistas que nortearam os primeiros anos da República; Moisés representa a entrada das ideias socialistas em certos meios sociais, sobretudo no proletariado urbano e em setores intelectuais. O fato de Moisés sentir-se constantemente perseguido pela polícia é uma referência direta aos conflitos entre os socialistas e o governo Vargas, como na Intentona Comunista (1935) e nas várias prisões de pessoas consideradas subversivas.
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