segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Análise 27 - Memórias de um Sargento de Milícias


Uma das pioneiras do gênero romanesco no Brasil e escrita para ser publicada em partes (num jornal), a obra retrata com bom humor a sociedade carioca do início do século passado.

Memórias de um Sargento de Milícias é uma das obras mais singulares da Literatura brasileira. Escrita nos primórdios do gênero romanesco entre nós, surge logo após as experiências de Teixeira e Sousa – O Filho do Pescador (1843) –, e Joaquim Manuel de Macedo – A Moreninha (1844). Isso explica alguns traços primitivos de seu estilo e de sua estrutura. Trata-se de um romance de humor popular, baseado nas aventuras de tipos humanos bem característicos da sociedade carioca do começo do século XIX. O humor explorado por Manuel Antônio de Almeida é o mesmo das peças de Martins Pena, o maior dramaturgo do Romantismo brasileiro, autor de O Noviço – encenada em 1845, sete anos antes da publicação de Memórias. 

Uma narrativa de costumes

Destinada às páginas do jornal Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, Memórias tem capítulos unitários, quase todos contendo um episódio completo. Em seu conjunto, a obra reconstitui a vida de Leonardo Pataca e de seu filho Leonardo, em meio a um vivo retrato das camadas baixas do Rio de Janeiro de D. João VI. Além de concentrar-se nas proezas (sobretudo amorosas) desses dois arquétipos da malandragem carioca, o romance dá muita atenção às festas, aos encontros, às instituições e às profissões populares da cidade, cujas ruas são descritas com a animação de uma verdadeira narrativa de costumes. Trata-se, enfim, de um romance muito agitado e festivo em que não há praticamente nenhuma página sem um incidente ou surpresa espantosa.

Para lembrar
Para que se perceba toda a movimentação presente em Memórias de um Sargento de Milícias, é preciso vencer o problema da linguagem – um pouco estranha aos leitores de hoje. A preocupação do autor foi utilizar o português coloquial de seu tempo, com muitas palavras e construções difíceis para a sensibilidade atual.


Romantismo excêntrico

No final do século XIX, o crítico José Veríssimo interpretou Memórias de um Sargento de Milícias como um romance pré-realista, em virtude de sua inclinação para o retrato social. Depois, Mário de Andrade aproximou-o do romance picaresco espanhol, principalmente de autores como Lazarillo de Tormes ou Hurtado de Mendonza. Mais recentemente, Antonio Candido demonstrou que se trata de um romance propriamente romântico com a particularidade de apresentar uma certa excentricidade em relação à média das obras do Romantismo brasileiro.

Uma obra original

Assim como Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, é excêntrico pelo excesso de imaginação e fantasia, e Iracema, de José de Alencar, pelo excesso de recursos poéticos, Memórias de um Sargento de Milícias distancia-se da média da sensibilidade romântica pelas seguintes razões:
• A história não envolve personagens da classe dominante, mas sim, pessoas de baixa renda. 

• O personagem central não é herói nem vilão. Trata-se de um anti-herói malandro, de natureza picaresca, muito próximo do pícaro espanhol. 

• As cenas não são idealizadas, mas reais, apresentando aspectos pouco poéticos da existência. 

• Ausência de moralismo e recusa da ideia de que as ações humanas se dividem necessariamente entre boas e más. 

• Troca do sentimentalismo pelo humorismo, do estilo elevado e poético pelo estilo tosco e direto, sem torneios embelezadores. 

• O estilo é oral e descontraído, diretamente derivado da conversa ou do estilo jornalístico da época.


Anote!
A originalidade de Memórias em relação ao romance romântico limitou sua penetração na época em que foi escrita, mas, de alguma forma, a aproximou do Realismo, do Modernismo e do folclore nacional.

Mário de Andrade buscou inspiração no protagonista Leonardo para compor o seuMacunaíma em 1928. Memórias tem também conexões com Serafim Ponte Grande (1928-1933), de Oswald de Andrade. No folclore, vincula-se à tradição das diabruras de Pedro Malazarte.


Descrições e caricaturas

O romance apresenta cenas e costumes do Rio de Janeiro da época de D. João VI.
As descrições da obra apontam basicamente para duas direções: ora para um retrato vivo da indumentária, dos costumes, dos logradouros públicos e das instituições do velho Rio de Janeiro; ora para o exagero dos traços físicos das pessoas e das situações. As caricaturas, tão abundantes quanto expressivas em Memórias de um Sargento de Milícias, são um excelente exemplo desses exageros. Elas tornam o estilo do romance um tanto popular, mas nem por isso menos humorístico. Há, também, uma infinidade de alusões irônicas e passagens insinuantes, embora elas não apresentem a fineza encontrada, por exemplo, nas obras de outro grande escritor: Machado de Assis. 

Técnica do enredo e personagens

Memórias de um Sargento de Milícias não é um romance escrito em primeira pessoa, como faz supor o título. O foco narrativo é na terceira pessoa. A palavra "memórias", nesse caso, equivale a apontamento histórico ou relato ditado pela lembrança. Como foi escrito no Segundo Reinado tratando do Rio de Janeiro da época de D. João VI, é evidente que o romance possui algumas propriedades de romance histórico, na medida em que se detém na captação de cenas e costumes do passado. Nesse sentido é que se deve entender o termo "memórias" do título.


Trata-se também de um romance de costumes com propriedades picarescas, porque sua ação é episódica e parcelada. A tênue história central – encontro, separação e união dos protagonistas – funciona como pretexto para a apresentação das diabruras e dos apertos em que se metem os dois Leonardos. A ação incorpora a variedade, a energia e o curto fôlego das travessuras da infância, da juventude desajustada (filho) e da senilidade precoce (pai).


Anote!
O foco narrativo de Memórias é na terceira pessoa. Trata-se de relatos ditados pela lembrança, mas que também têm características de um romance histórico especial, que fala dos costumes de uma época com picardia e bom humor.


Personagens como tipo sociais

As aventuras dos protagonistas envolvem os mais variados tipos humanos (a Cigana, o Mestre de Cerimônias, o Mestre de Reza, Chico Juca, Teotônio etc.), os quais participam de cenas isoladas e somem, sem maiores consequências para a trama central. Assim é o romance picaresco, expressão derivada do termo pícaro, espécie de personagem marginal que vive ao sabor do acaso. 

Por ser um romance de costumes, Memórias recompõe hábitos, fornecendo um animado retrato de época. Por essa razão, o autor caracteriza os personagens como parte de um grupo, esquecendo a individualidade psicológica.


Para lembrar 
Como nas peças de Gil Vicente, os personagens são tipos sociais, cuja ação personaliza a função que exercem na comunidade.


Assim, vários personagens não possuem nome no livro, mas são designados pela profissão ou condição social que possuem: o Barbeiro, a Parteira, a Cigana, o Fidalgo, o Mestre de Cerimônias, o Toma-Largura etc. Quando um personagem desses fala ou age, tem-se a impressão de um grande movimento, pois nele vislumbra-se todo o grupo social a que pertence. Esta é uma das razões por que Memórias é considerado um dos livros mais vivos e dinâmicos da Literatura brasileira.

O registro social como moldura de episódios

Toda vez que o narrador apresenta um episódio da vida de Leonardo ou de outro personagem, ele traça o painel social do contexto em que se desenvolve a peripécia. Nesta operação, gasta geralmente dois ou três parágrafos, onde fornece os componentes do quadro no qual se desenvolve a aventura. Veja-se, como exemplo, o esboço do cenário de uma diabrura de Leonardinho, no tempo em que era sacristão na Igreja da Sé. O episódio desenrola-se durante uma festa religiosa, onde o Mestre de Cerimônias deveria fazer um importante sermão: 

"As festas daquele tempo eram feitas com tanta riqueza e com muito mais propriedade, a certos respeitos, do que as de hoje: tinham entretanto alguns lados cômicos; um deles era música de barbeiros à porta. Não havia festa em que se passasse sem isso; era coisa reputada quase tão essencial como o sermão; o que valia porém é que nada havia mais fácil de arranjar-se; meia dúzia de aprendizes ou oficiais de barbeiro, ordinariamente negros, armados, este com um pistão desafinado, aquele com uma trompa diabolicamente rouca, formavam uma orquestra desconcertada, porém estrondosa, que fazia as delícias dos que não cabiam ou não queriam 
estar dentro da igreja."

Anote!
Há muitas passagens desse tipo e, quando esses registros sociais surgirem, o leitor deve saber de antemão que se trata da moldura de um episódio que está por acontecer. Essas descrições pitorescas estão sempre integradas ao enredo.

Assim como o elemento pitoresco desse exemplo completa o quadro da festa em que Leonardinho vai aprontar uma de suas peraltices, as demais descrições desse tipo no romance são sempre integradas organicamente ao enredo.
Embora elas possam ser lidas como lances de humor ou como flagrantes sociais independentemente do que vem antes e depois, não se pode esquecer que essas descrições se integram sempre ao corpo da ação romanesca.
Essa integração do pitoresco à estrutura do enredo contribui para a qualidade artística do livro, que quase nunca se perde no meramente documental, pois as coisas e os costumes do tempo encontram sempre o preciso lugar no desenvolvimento da história. São integrados a ela, e não exteriores ao seu andamento.


Para lembrar
Um dos traços de psicologia coletiva que o autor registra com mais vivacidade é a vocação musical e festeira do povo carioca. Note ainda que a obra faz constantes alusões a instrumentos, danças e modinhas da época retratada.
Manuel Antônio de Almeida chega a transcrever três trechos de modinhas populares na época: uma cantada por Leonardo, durante a festa de batizado do filho; duas outras cantadas por Vidinha, numa de suas patuscadas com os primos e amigos. Em mais de uma passagem, fornece detalhes sobre o fado, apresentado como dança típica do Brasil. 


Documento linguístico

Na obra, os namorados tratam-se por senhor e senhora, como se pode ver pela declaração de amor de Leonardinho para Luisinha:


"– A senhora... sabe... uma coisa?

E riu-se com uma risada forçada, pálida e tola.
Luisinha não respondeu. Ele repetiu no mesmo tom:
– Então... a senhora... sabe ou... não sabe?
E tornou a rir-se do mesmo modo. Luisinha conservou-se muda.
– A senhora bem sabe... é porque não quer dizer... Nada de resposta.
– Se a senhora não ficasse zangada... eu dizia... Silêncio.
– Está bom... eu digo sempre... mas a
senhora fica ou não fica zangada?
Luisinha fez um gesto de quem estava impacientada.
– Pois então eu digo... a senhora não sabe... eu... eu lhe quero... muito bem."

Mesmo numa roda de conversa, quando alguém se dirige informalmente à jovem Vidinha, o faz na segunda pessoa do plural: 

"– Ai, criatura, disse uma das velhas, quereis que vos reze um responso para cantardes uma modinha?"

A linguagem usada pelo narrador obedece à norma culta do Português, mesmo nos momentos mais descontraídos ao longo do romance. Os personagens, porém, às vezes se expressam pelo padrão popular, que muitas vezes deforma as palavras do idioma. Há registro disso, por exemplo, quando o narrador, tratando da doença do Compadre, refere-se às pílulas que ele deveria tomar. Falando do mesmo remédio, a Comadre diz:

"– Pírulas, disse consigo, então o negócio é sério; e eu, que tenho má-fé com pírulas; ainda não vi uma só pessoa que as tomasse que escapasse."

Inclusão do leitor

Um dos importantes traços estilísticos de Memórias é a constante referência do narrador ao leitor. Isso certamente tem a ver com o propósito de estabelecer um suposto diálogo amigável com o público do jornal, isto é, esse traço revela o interesse de facilitar a recepção da obra, como deixa ver o seguinte fragmento:

"Dadas as explicações do capítulo precedente, voltemos ao nosso memorando, de quem por um pouco nos esquecemos. Apressemo-nos a dar ao leitor uma boa notícia: o menino desempacara do F, e já se achava no P, onde por uma infelicidade empacou de novo."

Vida e obra

Manuel Antônio de Almeida, formado em Medicina, dedicou-se à Literatura e ao desenho.
Um romântico independente



De origem humilde, Manuel Antônio de Almeida nasceu em 1831, ano da abdicação de D. Pedro I e data em que também nascia o poeta Álvares de Azevedo. Apesar das dificuldades financeiras, conseguiu formar-se em Medicina, mas nunca clinicou. Dedicou-se sempre às artes, tanto ao desenho quanto à Literatura. 

Para se manter nos estudos, traduzia folhetins franceses, escrevia crônicas e críticas para o Correio Mercantil, jornal que publicou os folhetins dominicais de seu único romance. Em 1858, foi nomeado diretor da Tipografia Nacional, ocasião em que teve oportunidade de auxiliar o então tipógrafo Joaquim Maria Machado de Assis, mais pobre e desvalido do que ele. Manuel Antônio de Almeida morreu em 1861, aos 30 anos, num naufrágio na Baía de Guanabara, quando fazia campanha para deputado.
Publicação do romance

Memórias de um Sargento de Milícias foi publicado entre 1852 e 1853 em folhetins anônimos em A Pacotilha, suplemento dominical do Correio Mercantil. Os capítulos saíam à proporção que eram escritos, semanalmente. Em livro, a obra foi lançada nos anos de 1854 e 1855, em dois volumes, sob a indicação autoral de "Um Brasileiro" para explicitar que não se tratava, como era então mais comum, de romance traduzido. Cada volume correspondia a uma das partes da obra. A omissão do nome do autor nas duas edições em vida revela que ele não possuía pretensões na carreira literária. 


Contra o Romantismo

O livro de Manuel Antônio de Almeida é romântico, não há dúvida. Todavia, sua sensibilidade não se derramava tanto quanto a dos ultrarromânticos que constituíam a grande novidade poética na época de Memórias. De fato, o melhor da poesia ultrarromântica brasileira foi publicado na década de 1850: A Nebulosa, de Joaquim Manuel de Macedo; Lira dos Vinte Anos, de Álvares de Azevedo; Inspirações do Claustro, de Junqueira Freire; As Primaveras, de Casimiro de Abreu. 


Anote!
Embora romântico, Manuel Antônio de Almeida faz questão de manter o equilíbrio emocional, primando pela clareza e ridicularizando todo e qualquer transbordamento emotivo em seus personagens.

Em duas ocasiões, manifesta-se claramente contra a moda do sentimentalismo:


"Tratava-se de uma cigana; o Leonardo a vira pouco tempo depois da fuga da Maria, e das cinzas ainda quentes de um amor mal pago nascera outro que também não foi a este respeito melhor aquinhoado; mas o homem era romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo; não podia passar sem uma paixãozinha."


"Dizem todos, e os poetas juram e tresjuram, que o verdadeiro amor é o primeiro; temos estudado a matéria, e acreditamos hoje que não há que fiar em poetas: chegamos por nossas investigações à conclusão de que o verdadeiro amor, ou são todos ou é um só, e neste caso não é o primeiro, é o último. O último é que é o verdadeiro, porque é o único que não muda. As leitoras que não concordarem com esta doutrina convençam-me do contrário, se são disso capazes."


Esta postura de independência em relação à moda do sentimentalismo deve ter contribuído para que o livro de Manuel Antônio de Almeida caísse no esquecimento junto aos leitores e à crítica do tempo. A segunda edição da obra só saiu um ano depois de sua morte, em 1862. Em vida, nenhum estudioso lhe deu atenção. Parece mesmo que não houve nem resenhas jornalísticas sobre seu livro. O grande prestígio dele começaria bem mais tarde, a partir do Realismo.


Fonte: http://vestibular.uol.com.br

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