Reconhecido como o maior dramaturgo português, Gil Vicente reúne neste Auto – uma de suas obras-primas – a crítica ferina, o divertimento e um espírito reformador baseado no respeito às instituições.
Publicado em 1517, ao que tudo indica pelo próprio autor, o Auto da Barca do Inferno foi impresso em folheto avulso (chamado "cordel"). Voltou a aparecer em 1562, na edição da Compilaçam, feita por seu filho Luís Vicente. Foi encenada pela primeira vez na câmara da rainha D. Maria de Castela, na presença do rei D. Manuel I e de sua irmã D. Leonor, a Rainha Velha. Assim como o Monólogo do Vaqueiro, o Auto também deliciou o casal real e seus parentes nobres.
Uma alegoria do juízo final
Definido pelo próprio Gil Vicente como um "auto de moralidade", o Auto da Barca do Inferno tem como cenário fixo duas embarcações, num porto imaginário para onde vão as almas no instante da morte. Cada barca possui um comandante – a do Paraíso, um Anjo; a do Inferno, um Diabo, que conta com um Companheiro. A ação da peça desenvolve-se a partir da chegada dos personagens, que um a um desfilarão por esse porto, procurando encontrar a passagem para a vida eterna.
Serão julgados pelo que fizeram em vida. O Diabo e o Anjo acusam, mas só o Anjo pode absolver. Em seguida, são encaminhados a uma das barcas.
Uma alegoria do juízo final
Definido pelo próprio Gil Vicente como um "auto de moralidade", o Auto da Barca do Inferno tem como cenário fixo duas embarcações, num porto imaginário para onde vão as almas no instante da morte. Cada barca possui um comandante – a do Paraíso, um Anjo; a do Inferno, um Diabo, que conta com um Companheiro. A ação da peça desenvolve-se a partir da chegada dos personagens, que um a um desfilarão por esse porto, procurando encontrar a passagem para a vida eterna.
Serão julgados pelo que fizeram em vida. O Diabo e o Anjo acusam, mas só o Anjo pode absolver. Em seguida, são encaminhados a uma das barcas.
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O Auto da Barca do Inferno é uma expressão do Humanismo gótico – um teatro poético, com versos redondilhos, rimas, símbolos, metáforas e agudezas. Os personagens são tipos sociais – a nobreza, o clero e o povo.
Quando a peça começa, estão no palco o Anjo e o Diabo com seu Companheiro. A primeira cena mostra estes últimos eufóricos na preparação do navio infernal que receberá as almas. Eles sabem que serão muitas. Em oposição a esse quadro dinâmico está a figura do Anjo, sério e calado, quase uma estátua. As diferenças entre esses dois personagens são marcantes. Além da oposição conceitual Bem x Mal, Céu x Inferno, eles também assumem posturas opostas, fazendo com que o Diabo – alegre, simpático e principalmente irônico – praticamente domine a peça.
As figuras do Auto
O Fidalgo prepotente veste-se com apuro e vem acompanhado de um pajem que lhe carrega uma cadeira de encosto alto. Os personagens, em sua maioria, trazem consigo referências do que foram quando vivos. No caso do Fidalgo, a cadeira de encosto, o pajem e a rica indumentária formam um conjunto de símbolos que indicam sua alta posição social. Mas, nesse porto, a noção de hierarquia social dilui-se. Ali, o julgamento é moral. O Diabo, que é sempre o primeiro a receber as almas, convida dom Anrique, o Fidalgo, a embarcar. Entretanto, ao saber o destino do batel, o nobre zomba do convite.
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Embora típico, o Fidalgo apresenta uma certa humanidade. Quando rejeitado pelo Anjo, se mostra arrependido por sua existência vazia: "folgava ser adorado; / confiei em meu estado / e nom vi que me perdia".
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O Onzeneiro ambicioso
É o agiota que traz consigo uma enorme bolsa vazia, onde guardava o dinheiro que roubava das pessoas quando vivo. O Diabo o cumprimenta esfuziante e o trata por "meu parente".
O Onzeneiro queixa-se por estar sem dinheiro. O Diabo indica-lhe a barca infernal. Mas o agiota, ao saber do destino da embarcação, recusa-se a entrar, indo em direção ao batel da Glória. O Anjo despede-o, acusando-o pelo exercício da onzena: "Ó onzena, como és feia / e filha da maldição".
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O ingênuo Joane
Quando chega ao cais, o Parvo é por instantes iludido pelo Diabo, que o quer embarcar. Quando é informado do rumo do batel, porém, Joane desata um grosso e engraçado xingamento ao Diabo, recheado de pragas e palavrões:
"Hiu! hiu! Lanço-te uma pulha de pica naquela! Hump! hump! caga na vela! Hiu! cabeça de grulha! Perna de cigarra velha, caganita de coelha, pelourinho de Pampulha, mija n'agulha! Mija n'agulha!" | ||
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O Sapateiro ladrão
O Sapateiro entra carregado de pesadas formas, instrumentos de trabalho que o identificam. Ao saber do destino do batel infernal, pergunta ao Diabo onde está a barca dos que morreram confessados e comungados. Entretanto, o Arrais do Inferno lembra-o de que, por 30 anos, roubara o povo com seu ofício. O remendão ainda recorre ao Anjo, mas sem sucesso.
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O Frade namorador
Este personagem traz consigo a namorada Florença. Suas roupas são ambíguas. Além das vestes sacerdotais, o Frade apresenta-se com instrumentos próprios para a prática da esgrima. Além de mostrar-se hábil nesse esporte, ainda se revela conhecedor da arte da dança e do canto populares. O Diabo, muito alegre, recebe o casal com graça e convida-o a embarcar. O Frade espanta-se. Como ele, um religioso, poderá ser condenado? Sempre ao lado de sua namorada, o padre recorre ao Anjo. Mas este, num silêncio reprovador, sequer lhe esboça uma palavra. Muito apegado aos prazeres do mundo, o Frade demonstra em cena uma preocupação verdadeira com a namorada Florença. Essa postura mais humana o aproxima, como personagem, do Fidalgo.
Este personagem traz consigo a namorada Florença. Suas roupas são ambíguas. Além das vestes sacerdotais, o Frade apresenta-se com instrumentos próprios para a prática da esgrima. Além de mostrar-se hábil nesse esporte, ainda se revela conhecedor da arte da dança e do canto populares. O Diabo, muito alegre, recebe o casal com graça e convida-o a embarcar. O Frade espanta-se. Como ele, um religioso, poderá ser condenado? Sempre ao lado de sua namorada, o padre recorre ao Anjo. Mas este, num silêncio reprovador, sequer lhe esboça uma palavra. Muito apegado aos prazeres do mundo, o Frade demonstra em cena uma preocupação verdadeira com a namorada Florença. Essa postura mais humana o aproxima, como personagem, do Fidalgo.
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A Alcoviteira
Ela chega ao cais e se recusa a entrar na barca do Diabo. Declara possuir joias e apetrechos usados em feitiçaria. Contudo, seu maior bem são "seiscentos virgos postiços". O correspondente atual mais próximo do arcaico "virgo" é o hímen. Com isso, a fala da Alcoviteira revela que ela prostituíra 600 meninas virgens. Mas o adjetivo "postiços" pode estar significando que as moças arranjadas por Brísida Vaz não eram virgens. Misto de cafetina e feiticeira, a Alcoviteira aproxima-se do Anjo e procura convencê-lo a embarcá-la com um discurso sedutor, próprio da arte amatória que tão bem conhecia na prática da prostituição. Mas é o Diabo quem a recebe com gentileza, pois lhe encanta muito a sordidez deste personagem.
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O Judeu rejeitado
Aproxima-se do batel infernal carregando um bode às costas. O bode é a insígnia do judaísmo. O Diabo, que até então estava sedento de almas, atende com má vontade o Judeu. Este, por sua vez, ao conhecer o rumo da nau, quer embarcar. Mas é rejeitado pelo Diabo sob pretexto de não aceitar o bode em sua barca. O Judeu tenta suborná-lo, pois não pode se separar do animal. Pede, sem resultado, a intervenção do Fidalgo, com quem tinha negócios. O comandante infernal sugere ao Judeu a outra barca, mas Joane o impede de se aproximar do Anjo, recriminando-o por haver desrespeitado a religião católica. Por alguns instantes, o personagem é condenado a vagar sem destino pelo cais das almas. No final, o Diabo permite que o Judeu e o bode sigam numa embarcação a reboque da sua.
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O Corregedor guloso
Equivalente aos juízes atuais, o Corregedor entra carregado de autos (processos), que o caracterizam. Convocado pelo Diabo para fazer parte da barca dos danados, surpreende-se e, para argumentar em defesa própria, utiliza-se de um precário latim forense que se mistura ao português. Ao deturpar o latim, língua dos clérigos e dos advogados, na boca do Corregedor, Gil Vicente consegue, além do efeito de humor, demonstrar a inconsistência da formação dos homens de lei de seu tempo. Em meio à conversação, chega ao porto o Procurador (advogado do Estado), reconhecido pelo Corregedor, já que no mundo trabalharam juntos.
O Procurador corrupto
Carregando livros (símbolos), o Procurador é convidado pelo comandante infernal a entrar na barca dos perdidos. Tal como o Corregedor, o Procurador nega-se a embarcar. Os dois doutores conversam sobre os crimes que cometeram e juntos dirigem-se ao batel do Paraíso. O Anjo não os recebe e maldiz a ação dos burocratas. O Parvo Joane também intervém, em latim atrapalhado, para acusar os bacharéis. Os dois homens de lei vão fazer companhia a Brísida Vaz, que em vida estivera constantemente respondendo a processos judiciais.
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O Enforcado testa de ferro
O escrivão Pero de Lisboa aproxima-se do batel dosmal-aventurados. Traz ainda no pescoço a corda com a qual se enforcou, acreditando que assim teria a redenção de todos os crimes que cometera. O Diabo desilude-o. Ao que tudo indica, o escrivão era uma espécie de "testa de ferro", pois praticara crimes, no exercício da profissão, sob o comando de seu chefe Garcia Moniz, poupando-lhe o nome e repassando-lhe os lucros.
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Os Quatro Cavaleiros de Cristo
Trazem armas e uma cruz, símbolos do Cristianismo. São Cavaleiros que morreram nas Cruzadas. Ao passar pelo batel dos danados, são interpelados pelo Diabo, que os requer: "Entrai cá! Que cousa é essa? / Eu não posso entender isto!". Ao que responde um Cavaleiro: "Quem morre por Jesus Cristo / não vai em tal barca como essa!". Os Quatro Cavaleiros são recebidos pelo Anjo em seu batel e assim termina a peça.
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Vida e obra - Um crítico atento e mordaz |
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