Morte e Vida Severina apresenta a viagem de um sertanejo que procura melhores condições de sobrevivência em outras paragens. Mais do que uma retirada, porém, a viagem surge como símbolo da vida e da morte de tantos marginalizados. Nessa obra, já se torna mais explícita a crítica social do autor.
O sofrimento do nordestino
Por meio de um monólogo, o personagem central Severino procura apresentar-se, identificando-se entre outros companheiros de nome e de vida. Quanto mais tenta, porém, mais tipificado fica: tona-se cada vez mais visível o quanto Severino leva a mesma vida de tantos outros marginalizados.
Na sua viagem em busca de sobrevivência, Severino encontrará várias vezes a morte, que aparece com faces diferentes. Todas elas, porém, retratam o sofrimento do nordestino esquecido pela sociedade e pelo governo.
Em Recife, pensando ter chegado a um lugar onde teria direito a uma vida mais digna, logo escuta a conversa de dois coveiros prenunciando a miséria e a desgraça "da gente retirante que vem do Sertão de longe".
Desiludido, Severino percebe que sua luta foi inútil: também não há vida para ele em Recife. Sem esperanças, aproxima-se de um dos cais do rio Capibaribe e pensa se não seria melhor dar fim à vida. Nesse momento, encontra seu José, mestre carpina, oriundo de Nazaré da Mata.
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Na sua viagem em busca de sobrevivência, Severino encontrará várias vezes a morte, que aparece com faces diferentes. Todas elas, porém, retratam o sofrimento do nordestino esquecido pela sociedade e pelo governo.
Em Recife, pensando ter chegado a um lugar onde teria direito a uma vida mais digna, logo escuta a conversa de dois coveiros prenunciando a miséria e a desgraça "da gente retirante que vem do Sertão de longe".
Desiludido, Severino percebe que sua luta foi inútil: também não há vida para ele em Recife. Sem esperanças, aproxima-se de um dos cais do rio Capibaribe e pensa se não seria melhor dar fim à vida. Nesse momento, encontra seu José, mestre carpina, oriundo de Nazaré da Mata.
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A conversa é interrompida por uma mulher que chega para anunciar o nascimento do filho do mestre carpina. Vizinhos e amigos aparecem para celebrar a nova vida. Alguns chegam trazendo presentes – lembrando a visita dos reis magos ao menino Jesus –, sem deixar de lado, porém, a imagem da miséria, que não impede a confraternização.
Duas ciganas aproximam-se, fazendo profecias que mostram que a vida do novo Severino não será muito diferente da dos demais: seja nos mangues do rio Capibaribe, catando caranguejos, seja nos mangues do rio Beberibe, trabalhando como operário de fábrica, será a mesma vida severina. Mesmo assim, a louvação à vida que surge no meio da miséria continua.
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A forma que reflete o conteúdo
A peça de João Cabral, escrita toda em versos, é um exemplo da preocupação do poeta em aproximar forma e conteúdo. A maioria dos versos está estruturada na "medida velha", isto é, em redondilhas maiores (compostas por sete sílabas poéticas).
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O registro de rituais e cânticos diante dos problemas comuns da vida nordestina e diante da tão constante presença da morte também contribui para instaurar o cotidiano do retirante a fim de reiterar na forma poética o mundo escolhido para ser retratado:
"– Finado Severino quando passares em Jordão e os demônios te atalharem perguntando o que é que levas… – Dize que levas cera, capuz e cordão mais a Virgem Conceição. […] – Dize que levas somente coisas de não: fome, sede, privação." | ||
A riqueza de símbolos
Em todo o texto, as figuras de linguagem asseguram a força dramática do poema. São frequentes as metáforas, que surgem já na construção do próprio Severino, alegoria dos marginalizados. Sua viagem, que por sua vez é metáfora da vida dos retirantes na sua luta por sobrevivência, ganha novas roupagens metafóricas, por exemplo, na imagem do rosário com suas contas – a estrada com suas vilas. Cabe ao retirante rezar todas as contas, ou seja, passar por todas as vilas, para atingir o seu objetivo, Recife (ou a sobrevivência). O rio Capibaribe, metáfora do próprio curso da vida, por vezes, míngua, assustando o retirante, provocando nele o medo de perder-se do caminho certo, o medo de perder o tênue fio que o liga à vida. A violência do sistema latifundiário contra o pequeno trabalhador do campo, por ele explorado e ameaçado, aparece metaforizada na "ave-bala" que mata o Severino lavrador. Na fala final de um dos coveiros no cemitério, em Recife, mais uma metáfora para a viagem de Severino, atribuindo-lhe um novo sentido, ainda mais severo:
Em todo o texto, as figuras de linguagem asseguram a força dramática do poema. São frequentes as metáforas, que surgem já na construção do próprio Severino, alegoria dos marginalizados. Sua viagem, que por sua vez é metáfora da vida dos retirantes na sua luta por sobrevivência, ganha novas roupagens metafóricas, por exemplo, na imagem do rosário com suas contas – a estrada com suas vilas. Cabe ao retirante rezar todas as contas, ou seja, passar por todas as vilas, para atingir o seu objetivo, Recife (ou a sobrevivência). O rio Capibaribe, metáfora do próprio curso da vida, por vezes, míngua, assustando o retirante, provocando nele o medo de perder-se do caminho certo, o medo de perder o tênue fio que o liga à vida. A violência do sistema latifundiário contra o pequeno trabalhador do campo, por ele explorado e ameaçado, aparece metaforizada na "ave-bala" que mata o Severino lavrador. Na fala final de um dos coveiros no cemitério, em Recife, mais uma metáfora para a viagem de Severino, atribuindo-lhe um novo sentido, ainda mais severo:
"– Não é viagem o que fazem, vindo por essas caatingas, vargens; aí está o seu erro: vêm é seguindo seu próprio enterro." | ||
Outras duas belas metáforas trabalhadas no poema ganham ainda mais força expressiva pelo seu caráter antitético. Diante da desesperança com relação à própria vida, Severino pergunta para Seu José, mestre carpina:
"– que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?" | ||
A imagem do salto reaparece estabelecendo uma antítese com a figura anterior na fala da mulher que anuncia o nascimento do filho do mestre carpina:
"– não sabeis que vosso filho saltou para dentro da vida? Saltou para dentro da vida ao dar seu primeiro grito;" | ||
Nessa antítese entre a desilusão de Severino e a esperança que traz a vida que surge, está a força que move a vida.
Além dessas e de outras várias metáforas, o poema é rico em antíteses que servirão ora para retratar as contradições da vida severina, marcada pela luta contra a seca e contra a morte:
"– essa gente do Sertão que desce para o litoral, sem razão, fica vivendo no meio da lama, comendo os siris que apanha; pois bem: quando sua morte chega, temos de enterrá-los em terra seca." | ||
ora para revelar a esperança da vida nova no meio do desgastado sofrimento:
"– E belo porque com o novo todo o velho contagia, – Belo porque corrompe com sangue novo a anemia. – Infecciona a miséria com vida nova e sadia" | ||
Também o paradoxo surge realçando a violência e a tragicidade da curta expectativa de vida do nordestino:
"– que é a morte que se morre de velhice antes dos trinta" | ||
A musicalidade
As figuras sonoras, aliterações e assonâncias, que valorizam, respectivamente, sons consonantais e vocálicos, distribuem-se pelo poema reforçando sua musicalidade:
"– E foi morrida essa morte, irmão das almas, essa foi morte morrida ou foi matada?" | ||
As falas
O texto altera sua estrutura entre monólogos, trazendo reflexões e constatações de Severino, diante das suas observações ao longo da viagem, e diálogos, alguns com a participação de Severino, outros apenas presenciados por ele.
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O retrato de um povo
Seguindo o padrão dramático medieval escolhido (o auto), Morte e Vida Severina compõe-se de apenas um ato, uma ação principal. Subdividida em 18 cenas, a peça assume também as características de poema narrativo de tradição popular nordestina.
Seguindo o padrão dramático medieval escolhido (o auto), Morte e Vida Severina compõe-se de apenas um ato, uma ação principal. Subdividida em 18 cenas, a peça assume também as características de poema narrativo de tradição popular nordestina.
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Se o subtítulo nos esclarece a mescla medieval e nordestina, o título não deixa de ser menos elucidativo. Na inversão da antítese morte versus vida, encontramos o retrato não só da viagem de Severino, marcada pelos encontros com a morte em todas as paragens e encontrando a vida apenas na cena final – o nascimento do menino. A predominância da morte está presente também, visto o caráter metafórico da viagem, na própria vida severina. A morte ronda desde o nascimento; a mesma terra que cobriu pais, parentes e amigos, espera para cobrir o corpo do próximo Severino todos os dias. A adjetivação da expressão atribui-lhe o caráter coletivo. Morte e vida, ambas são severinas. O termo, criado por meio da derivação imprópria, remete ao substantivo próprio Severino. Este, por sua vez, alude ao adjetivo severo, rude, seco, rigoroso. A vida – ou a morte – severina é de todos os severinos, ou seja, de todos que levam a mesma vida difícil, marginalizada, sem esperanças. Essa é a razão pela qual o nosso Severino, o retirante, não consegue, no monólogo que inicia a peça, identificar-se, individualizar-se aos olhos do leitor. Ele não é um indivíduo, mas sim um personagem-tipo, representante de um grupo social.
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A seca na narrativa
O estilo forte e seco de João Cabral, que está presente em toda a trajetória de sua obra, garante ainda mais unidade ao poema dramático Morte e Vida Severina, numa total interação entre a denúncia da realidade seca e cruel e a linguagem que a reproduz. Ao longo do poema, encontramos momentos descritivos em que a paisagem concretiza-se aos nossos olhos, tão ao gosto do poeta, desnudando toda a miséria da região:
"– entre uma conta e outra conta, entre uma e outra ave-maria, há certas paragens brancas, de planta e bicho vazias, vazias até de donos e onde o pé se descaminha." | ||
Diálogos contundentes
Outras vezes, a força da mensagem surge nos diálogos contundentes, em que a denúncia e, muitas vezes, a ironia se fazem presentes. É o caso, por exemplo, do diálogo entre Severino e os irmãos das almas, com a denúncia da violência no sertão e a constatação da injustiça. Ou do diálogo entre o retirante e a rezadeira, com a constatação de que a mão de obra do trabalhador rural torna-se inútil diante das dificuldades impostas pelo sistema econômico, cujos bancos não se interessam em financiar roçados; cujas usinas levaram à falência os engenhos de cana-de-açúcar. Sem falar de uma verdadeira indústria da morte que a rezadeira denuncia: "só os roçados da morte compensam aqui cultivar". O mesmo tom encontra-se nas vozes que choram o morto da Zona da Mata.
Por meio de metáforas, o leitor vai tomando consciência de toda a rudeza da vida severina que termina ali de forma já tão conhecida: a morte miserável que encerra uma vida de lutas vãs, de desesperanças, tão igual a tantas outras:
"– Esse chão te é bem conhecido (bebeu teu suor vendido). – Esse chão te é bem conhecido (bebeu o moço antigo). – Esse chão te é bem conhecido (bebeu tua força de marido). – Desse chão és bem conhecido (através de parentes e amigos). – Desse chão és bem conhecido (vive com tua mulher, teus filhos). – Desse chão és bem conhecido (te espera de recém-nascido)." | ||
O discurso que muda o tom de desesperança aparece apenas no final, na fala de mestre carpina que, mesmo sem saber explicar a razão, não acredita na saída buscada por Severino:
"– Severino, retirante, não sei bem o que lhe diga: não é que espere comprar em grosso de tais partidas, mas o que compro a retalho é, de qualquer forma, vida." | ||
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Após o nascimento da criança e da celebração da vida que surge trazendo o novo ao que já está desgastado, mestre carpina conclui, por meio da "explosão de vida" que acaba de presenciar, que ela tem seu movimento natural, mesmo sendo severina. E é contra esse movimento intenso, capaz de sacudir mesmo os corpos mais franzinos, que Seu José acha que não se deve lutar. A luta válida é a que se trava contra a morte todos os dias:
"– É difícil defender, só com palavras a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina; […] E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: […] vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; […] mesmo quando é a explosão de uma vida severina." | ||
Vida e obra de João Cabral de Melo Neto |
Achei muito bom, parabéns pelo trabalho.
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