Publicada em 1881, esta obra de Machado de Assis inaugura o romance psicológico na Literatura brasileira.
Narrador – O personagem central
O romance tem uma perspectiva deslocada: é narrado por um defunto, que reconta a própria vida, do fim para o começo, num relato marcado pela franqueza e inserção. "Falo sem temer mais nada", diz o morto. É Brás Cubas, personagem "esférico", ou seja, de grande densidade psicológica, quem comenta as próprias mudanças.
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| Se o personagem fora uma criança abastada e protegida na infância, torna-se um jovem adulto leviano, em busca da melhor maneira de tirar vantagem. Sua conduta fica explícita quando descreve sua formação universitária na Europa: "Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim – embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e política para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação [...]". |
Quando volta ao Brasil, por causa da doença da mãe, se defronta pela primeira vez com a questão da morte e vive então um momento de introspecção e reflexão.Quando reencontra Marcela velha e doente, retoma a ideia da passagem do tempo. A isso Brás chama de teoria das edições da vida, anunciada nos primeiros capítulos, mas comentada muito depois.
"Pois sabei que, naquele tempo, estava eu na quarta edição, revista e emendada, mas ainda inçada de descuidos e barbarismos; defeito que, aliás, achava alguma compensação no tipo, que era elegante, e na encadernação, que era luxuosa." | ||
Na maturidade, começa a buscar a compensação pela existência sem nada de notável, sem filhos ou realizações: consegue um cargo público, busca notoriedade e respeitabilidade ao querer tornar-se ministro. Pouco antes de morrer, imagina ainda um último modo de se perpetuar: inventando um emplasto, uma medicação sublime.
Personagens complementares
Os personagens criados por Machado de Assis entram e saem de cena conforme os pensamentos de Brás Cubas. Entre eles, quem merece maior destaque é Quincas Borba que, mais tarde, será o personagem-título de outro romance do autor. Ele influencia profundamente o narrador com a sua teoria do Humanitismo. Os dois conheceram-se no colégio e reencontram-se muitos anos depois. Quincas é um mendigo que vai enlouquecendo progressivamente.
Ao morrer, está completamente fora de si. Seu Humanitismo prega que tudo o que acontece na vida faz parte de um quadro maior de preservação da essência humana.
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No contexto do romance, o Humanitismo convém a Brás para justificar sua existência vazia. A teoria de Quincas Borba dá a ele uma ilusão da descoberta de um sentido para a vida. A morte de Quincas Borba reconduz Brás Cubas ao confronto com a vacuidade de sua existência. Machado confirma assim a tese anunciada no capítulo 7 – "O Delírio", sobre a perseguição inútil da felicidade.
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As inovações de Machado de Assis
Escritor dedicado à problematização e ao questionamento da função da Literatura, Machado de Assis inova, neste livro, a temática, a estrutura e a linguagem.
O adeus ao Romantismo
Na temática, investe na complexidade dos indivíduos, que retrata sem nenhuma idealização romântica:
"Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis [...]". | ||
Aqui, por exemplo, constrói uma frase realista típica, contrapondo ao romantismo do envolvimento de 15 meses, os 11 contos de réis. Ao contrário dos personagens românticos, que se movem por um objetivo, e estabelecem metas ou fazem algo notável, a trajetória de Brás Cubas e dos personagens que o circundam nada tem de especial. Muitas vezes, eles se norteiam, como no caso de Marcela, pelo mais vil dos interesses. No final da vida, Brás Cubas conclui que precisa deixar alguma realização e se anima com a ideia de criar um emplasto com seu nome, algo que o tornaria famoso.
Um texto ao ritmo do pensamento
A estrutura de Memórias Póstumas de Brás Cubas tem uma lógica narrativa surpreendente e inovadora. A sequência do livro não é determinada pela cronologia dos fatos, mas pelo encadeamento das reflexões do personagem. Uma lembrança puxa a outra e o narrador Brás Cubas, que prometera contar uma determinada história, comenta todos os outros fatos que a envolvem, para retomar o tema anunciado muitos capítulos depois.
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Logo nas primeiras páginas, o escritor brinca com a expectativa do leitor de chegar logo às ações do romance. Machado de Assis, por intermédio do seu narrador, se dirige diretamente ao leitor, metalinguisticamente para comentar o livro. Diz Brás Cubas:
"Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem." | ||
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Um experimentador da linguagem
Machado de Assis foi o mais ousado dos escritores brasileiros anteriores ao Modernismo (1922) na experimentação de novas formas de expressão. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas mostra sua desconfiança da articulação perfeita entre o texto e a realidade e procura adequar a forma ao conteúdo. Exemplo: para traduzir a frustração de Brás Cubas quando não consegue se tornar ministro, a solução do autor foi deixar o Capítulo 139 em branco. No capítulo seguinte, explica:
"Há coisas que melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo anterior. | ||
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O autor também questiona a forma tradicional de expressão, acreditando que falta a ela a capacidade plena de levar ao leitor os sentimentos do personagem. É essa preocupação que faz Machado de Assis subverter a forma para adaptá-la ao conteúdo que deseja transmitir, como neste trecho do capítulo 55 – "O Velho Diálogo de Adão e Eva" –, em que descreve o auge da paixão entre Brás Cubas e Virgília:
"Brás Cubas . . . . . . ? Virgília . . . . . . Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Virgília . . . . . . ! Brás Cubas . . . . . . . Virgília . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .? . . . . . . . . . . . . . ." | ||
Ironias e digressões
A ironia é um dos traços mais marcantes da obra de Machado de Assis e aparece ainda mais acentuada nos chamados romances da maturidade. Pode ser entendida como mais um recurso para combater as verdades absolutas, das quais desacreditava por princípio. A construção irônica prevê sempre outros sentidos para o que é dito.
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Ao comentar, no primeiro capítulo, sobre o amigo que lhe presenteia com um empolado discurso fúnebre, o narrador agradece as palavras ditas em tom de comoção exagerada com uma frase certeira:
"Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei." | ||
A digressão é outro elemento importante da linguagem machadiana. Consiste na interrupção do fluxo narrativo, que envereda por assuntos desvinculados do tema inicial, mas mantendo com ele alguma analogia criada pela mente de quem conta. Essa analogia, com algum esforço, pode ser percebida pelo leitor, desde que ele se mantenha atento.
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É o que acontece, por exemplo, na parte inicial do romance, quando Brás Cubas deixa em suspenso por vários capítulos a explicação para sua morte, que prometera desde o início, para passear descomprometidamente por assuntos tão díspares quanto as pirâmides do Egito e a sua árvore genealógica. Quando volta a falar da causa mortis, é para comentar, com ironia "[...] acabemos de uma vez com o nosso emplasto". Como se já tivesse explicado antes do que se tratava!
Vida e obra |
Um escritor consagrado
Considerado por muitos como o maior escritor brasileiro, Joaquim Maria Machado de Assis teve uma existência relativamente estável e conheceu em vida o prestígio e a fama que lhe cabiam. Foi um dos fundadores, em 1896, da Academia Brasileira de Letras e eleito seu presidente vitalício. Ao morrer, em 1908, recebe honras fúnebres de chefe de Estado.
Nada poderia contrastar mais vivamente com seu nascimento, em 1839, no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, e com sua infância de menino órfão e pobre. Entre nascimento e morte, Machado percorreu um duro caminho de quem se faz pelas próprias mãos – mulato pobre do subúrbio, ele se transformaria em um dos mais respeitados intelectuais da Corte. Pelo que indicam os registros, Machado de Assis não frequentou a escola, embora tivesse aprendido a ler antes dos 10 anos. Ainda criança, vendeu doces na rua para ajudar a sustentar a casa. Caixeiro de uma livraria, tipógrafo e revisor foram algumas profissões que exerceu antes de se tornar jornalista e escritor. A estabilidade econômica, porém, veio de outras fontes. Como uma boa parcela da intelectualidade brasileira da época, Machado ingressou no funcionalismo público. Chegou a fazer carreira, foi oficial-de-gabinete de ministro e diretor de órgão público. Em 1889, ano da Proclamação da República, dirigia a Diretoria do Comércio. Nessa época, já era um escritor consagrado. A carreira de Machado como escritor contou com uma outra base sólida: o casamento estável com Carolina Novaes, uma portuguesa um pouco mais velha que o escritor.
Uma obra em dois tempos
Seu primeiro texto publicado foi o poema "Ela", na revista A Marmota Fluminense, em 1855, e seu primeiro livro de poemas, Crisálidas, é de 1864. Em 1870, publica mais dois livros de poemas, Falenas e Contos Fluminenses. Machado de Assis começa a publicar romances no ano seguinte: Ressurreição, ainda sob influência do Romantismo.
A parte mais significativa de sua obra – a chamada obra da maturidade – começa a aparecer entre 1881 e 1882, com a publicação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas e dos contos reunidos em Papéis Avulsos. Nestes livros, e mais tarde em obras-primas como Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899), desenvolve uma prosa realista, hábil em compor complexos retratos psicológicos e que se distancia tanto da idealização romântica quanto dos exageros cientificistas do Realismo/Naturalismo. Em 1904, a vida de Machado de Assis é abalada pela morte da esposa, sua companheira por 35 anos. Nesse mesmo ano, Esaú e Jacó é lançado. No ano de sua morte, 1908, é publicado Memorial de Aires. Cultuado em seu tempo (e até hoje) como escritor "clássico", representante máximo de nossa "boa Literatura", Machado de Assis soube, como nenhum outro escritor brasileiro, revelar os meandros da alma humana e combater, pela ironia sutil, as mazelas de nossa sociedade, ainda colonial, escravocrata e autoritária.
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