segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Análise 20 - A Ilustre Casa de Ramires


Publicado somente após a morte do autor, o livro é baseado no cruzamento de duas narrativas interligadas. É um dos melhores romances de Eça de Queirós no que se refere ao estilo e à construção romanesca. Nele, o autor apresenta como saída possível para Portugal um retorno à aristocracia e ao colonialismo, como forma de restaurar a glória do país.

Maior romancista e prosador da Literatura portuguesa da segunda metade do século XIX, Eça de Queirós viveu num dos períodos mais contraditórios da história e da Literatura portuguesas. Sua obra reflete muito das oscilações ideológicas, sociais e culturais dessa época, numa linguagem realista e ao mesmo tempo irônica – traço marcante do autor. Eça de Queirós retrata, aqui, seu desejo de superar um sentimento bem característico de sua geração: o da decadência de Portugal, visando contribuir para a recuperação de seu país. Grande romancista e contista, sua obra divide-se em três fases, nas quais exercita seu espírito crítico. Sua obra foi enquadrada, ainda, nos padrões do Realismo/Naturalismo. Pode ser comparada aos modelos estabelecidos pela Literatura francesa, em especial pelos autores Gustave Flaubert (1821-1880) e Émile Zola (1840-1902).

A narrativa


Ilustre Casa de Ramires é um romance de dicção claramente realista. Pertence à terceira fase da obra de Eça de Queirós, quando o autor abrandou sua crítica feroz da segunda fase (Realismo/Naturalismo) para usar uma linguagem épica que demonstra seu desejo de reconciliar-se com Portugal. O narrador é onisciente, construindo e explorando com agudeza os conflitos interiores de Gonçalo Mendes Ramires, o personagem central. 
O distanciamento e a objetividade do narrador permitem ao leitor acompanhar a lenta e progressiva transformação de Ramires em direção à sua reabilitação moral e social. A narração maneja com habilidade uma linguagem que oscila entre o tom irônico e o lírico, passando pelo satírico e o épico. A linguagem de Eça de Queirós apresenta uma consciência crítica da tradição literária lusitana e europeia, refletindo as contradições da própria nação. 


Anote!
Uma característica do estilo queirosiano é a intertextualidade e a paródia, além da metalinguagem. Há, aqui, uma recuperação das novelas de cavalaria medievais, muito exploradas pelo romance europeu. O grande romancista britânico Walter Scott e o escritor português Alexandre Herculano são lembrados de forma intertextual por meio da paródia e da sátira.


A reabilitação

À medida que Gonçalo vai-se transformando, sua dicção também muda e com ela a posição do narrador diante da novela medievalista. Isso se dá de tal forma que o final glorioso – apesar de violento e bárbaro – da narrativa medieval coincide com a reabilitação de Gonçalo. Aquilo que começara como uma mesquinha necessidade de projeção social e política do personagem termina como um hino à nação e a seu passado glorioso, além de espelho de um futuro também promissor. 

A linguagem e a representação do real

A linguagem de Eça de Queirós apresenta uma consciência crítica da tradição literária lusitana e europeia, além de refletir as contradições da própria nação. Assim, linguagem e representação estética são constituídos em função da representação do real histórico, conferindo legitimidade estética à estrutura romanesca, mesmo quando a solução apresentada para o futuro de Gonçalo e de Portugal pareça fruto de uma idealização de teor claramente regressivo e conservador.
A linguagem realista e irônica, numa necessidade de coerência interna com o projeto ideológico apresentado, lentamente cede lugar a um registro épico e restaurador, que se opõe ao tom agressivo e irônico combativo da segunda fase de Eça de Queirós. 


Para lembrar
O discurso épico e restaurador apresentado em A Ilustre Casa de Ramires opõe-se ao tom agressivo e irônico, além de combativo – uma característica da segunda fase (Realista Naturalista) da obra de Eça de Queirós.


Gonçalo e Portugal, dois destinos inseparáveis

A história se passa na última década do século XIX, um dos períodos mais difíceis e humilhantes para Portugal. Especialmente por conta do episódio conhecido como Ultimato, em que a Inglaterra exigiu que Portugal se retirasse das áreas africanas que estavam sob seu domínio. Por meio da figura de Gonçalo Ramires, o autor tenta sintetizar as fraquezas e as glórias de Portugal. Com isso, faz do destino pessoal do personagem uma "alegoria" daquilo que lhe parecia ser a única saída possível para os impasses e as contradições de Portugal, que foi tão poderoso no passado. A trajetória do fidalgo Gonçalo Mendes Ramires – filho de uma família nobre e antiga de Portugal – é o centro da obra. O personagem tem entre seus antepassados heróis portugueses envolvidos na história do país e da Europa. Mas logo no início da narrativa, ele representa justamente o oposto desse heroísmo e dessa glória. Gonçalo nada mais é do que um fidalgo sem firmeza moral: fraco, covarde e ambicioso que, para alcançar seus objetivos, é capaz de romper com todo e qualquer princípio moral.



Para lembrar
O atraso histórico de Portugal e sua impotência ficaram expostos com o Ultimato. Portanto, era necessário, no romance e no imaginário português, que Gonçalo trouxesse a África de volta. A Ilustre Casa de Ramires é, assim, uma compensação simbólica de uma derrota histórica.

Entre a glória e a decadência

O que surpreende o leitor no jogo narrativo de Eça de Queirós é a justaposição entre o passado e o presente, mais precisamente entre os tempos gloriosos de Portugal e sua decadência. De um lado, temos a mediocridade da vida provinciana e de sua aristocracia decadente. De outro, o passado glorioso de Portugal, há muito perdido. Romance de formação e narrativa medieval fundem-se de tal maneira que são elevados à condição de "alegoria" do desejado destino português, que só poderia ser retomado por meio de uma reconciliação com o passado colonial da nação. Gonçalo só se reabilita, moral e pessoalmente, quando decide abandonar Lisboa com toda a sua hipocrisia social, partindo para a África.


Anote!
Na trajetória pessoal de Gonçalo, encontramos uma interpretação corajosa da alma portuguesa contemporânea de Eça de Queirós. A covardia desse fidalgo, suas aspirações a um futuro glorioso, suas crises de consciência representariam, na visão do autor, Portugal, indeciso diante de seu presente e de seu futuro.


Elevando o passado

O destino de Gonçalo traduz muito daquilo que Eça de Queirós, na fase final de sua produção literária, acreditava ser o caminho viável para seu país: a retomada das tradições e do ilustre passado, materializados na veia expansionista e colonialista da nação, que fora um dos maiores impérios do mundo. O navio que leva Gonçalo para a África chama-se justamente Portugal. É bom lembrar que Ramires volta de lá enriquecido e mudado.


A narrativa dentro da narrativa

Eça de Queirós

Paralelamente à primeira narrativa, o autor tece outra, levada penosamente a cabo por Gonçalo. O personagem tenta estabelecer uma reputação política mostrando um perfil intelectual e literário. Influenciado por um antigo amigo da faculdade, em Coimbra, ele resolve escrever uma novela histórica de tom medieval, ao gosto da literatura do início do século XIX. A história envolve um episódio heroico em torno de Tructesindo Ramires, um de seus mais ilustres antepassados. Além de se cobrir de glórias literárias, seu objetivo é voltar a ter seu próprio nome e sua origem nobre em destaque. Toda a narrativa de Gonçalo, no entanto, não passa de uma versão em prosa, frouxa e mal-elaborada, de um poema escrito anos atrás por um tio e publicado num jornal de província. Seu talento literário resume-se a uma maldissimulada cópia, da mesma forma que sua estrutura moral reduz-se a um jogo hábil entre interesse e conveniência social.

Elogio à aristocracia e ao colonialismo

O romance é, na verdade, um elogio à aristocracia e ao colonialismo portugueses. O autor acredita que ambos funcionam como restauradores da glória portuguesa. A ideia do autor não passa de um Sebastianismo maldisfarçado e do desejo de retornar a tempos, que supõe, mais felizes e heroicos.

O Sebastianismo


Idealização do passado, elogio da aristocracia, defesa do neocolonialismo, adesão à função regeneradora da nobreza. Tudo isso são variantes de uma crença messiânica de origem popular chamada Sebastianismo, que habita o imaginário lusitano e que se baseia na morte e no desaparecimento do rei D. Sebastião nas areias de Alcácer-Quibir no ano de 1578. Com a morte do rei, o trono português foi dominado pela coroa espanhola, entre 1580 e 1640, marcando o declínio do poderio português. A partir desse momento, surge o mito de que D. Sebastião irá retornar e, com ele, a glória de Portugal renascerá.


Para lembrar
A oscilação entre o espírito crítico e combativo das obras da segunda fase de Eça de Queirós e o conservadorismo ideológico deste romance da terceira fase do autor marcam bem o conflito de toda uma geração empenhada na transformação de Portugal.

O caminho possível

O autor deixa evidente na obra sua proposta de fazer uma profunda releitura da história portuguesa. Depois dos arroubos de violenta e devastadora crítica a Portugal e à sua mediocridade feitos nos romances de sua segunda fase, Eça de Queirós dedica-se, então, a descobrir um caminho possível para seu país. Com isso, a crítica queirosiana torna-se mais branda e até construtiva. É movida, agora, pelo desejo de entender o destino de Portugal. 
O Eça de Queirós incansável, o socialista da primeira hora, cede lugar a um aristocrata um tanto quanto cínico e irônico, porém não de todo desencantado.

Da crítica do presente à idealização do passado

Antero de Quental.

Na sua fase mais combativa, em especial nos livros O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, Eça de Queirós faz uma crítica agressiva à burguesia lisboeta e aos ranços da vida provinciana e de suas instituições que considera hipócritas. Ataca a moral vigente e o atraso do país. Já na sua última fase, vai lentamente se aproximando do universo rural, agrário e aristocrático que marcou o passado português. Ao lado do espírito crítico, surge uma idealização do passado português e de suas origens gloriosas. O elogio bucólico do campo e da aristocracia soa, na verdade, como Sebastianismo maldisfarçado, porém despido do misticismo e do messianismo que sempre acompanharam essa crença popular. Gonçalo – filho de uma casa mais antiga que Portugal – parte em direção à África. Volta glorioso e rico, ao contrário de D. Sebastião que, movido por seus sonhos de glória, acaba enterrado nas areias do deserto. 

A consciência das contradições

Passado e presente, glória e decadência, grandeza e fragilidade estão de tal forma unidos em A Ilustre Casa de Ramires como o estão na vida portuguesa. Essas contradições que marcaram Portugal na segunda metade do século XIX movimentam o romance e criam o dinamismo interno tão rico e verdadeiro do personagem Gonçalo. A solução encontrada pelo autor para o destino de seu personagem (Gonçalo = Portugal) pode parecer utópica e sonhadora, mas nem por isso deixa de ser uma aspiração da alma lusitana.

Vida e obra de Eça de Queirós

Um crítico de sua época



Experiência na infância marcou a visão de vida retratada em sua obra.
José Maria d'Eça de Queirós nasceu em 1845 em Póvoa do Varzim, e morreu em 1900 em Paris. Filho de uma relação amorosa considerada ilícita, Eça de Queirós foi criado longe dos pais. Essa situação, segundo seus biógrafos e críticos, teria marcado o escritor, que desenvolveu uma consciência dos preconceitos e da hipocrisia da sociedade burguesa. Entre 1861 e 1866, estudou Direito na tradicional Universidade de Coimbra, presenciando o início da Questão Coimbrã, também conhecida como a Questão do Bom Senso e do Bom gosto. A Questão Coimbrã é uma famosa polêmica que introduziu o Realismo em Portugal. Os jovens estudantes de Coimbra, liderados pelo poeta Antero de Quental (1842-1891), autor de Odes Modernas, opuseram-se ao idealismo da Literatura romântica. Entre 1867 e 1872, Eça de Queirós desenvolveu sua carreira jurídica, paralelamente às atividades de jornalista e escritor.


No ano de 1870, participou das famosas Conferências do Cassino, que reafirmavam em Portugal o ideário do Realismo. A partir dessa data, ingressa no serviço diplomático, servindo em vários países, até alcançar o cobiçado posto de cônsul em Paris. O contato com a cultura de países mais avançados que Portugal talvez tenha acentuado sua compreensão do provincianismo e do atraso de seu país. Intensificou, assim, seu desejo de ajudar na reforma de Portugal. No ano de 1886, Eça de Queirós casa-se com Emília, filha do Conde de Resende, e se aproxima cada vez mais do ambiente da aristocracia portuguesa. Em 1889, passa a fazer parte de um grupo de intelectuais e políticos socialmente bem-sucedidos, mas que se autodesignavam Vencidos da Vida.

Grupo de intelectuais que formavam o grupo Vencidos da Vida.

Esse sentimento de derrota tinha origem na consciência do fracasso de suas ideias críticas diante da realidade desoladora de Portugal. Em síntese, esse grupo de intelectuais apresentava uma ideologia complexa muito comum no final do século XIX, fruto de uma mistura de Decadentismo, Niilismo e Aristocracismo, mistura que marcou a última fase da produção queirosiana. 

O livro A Ilustre Casa de Ramires começou a ser escrito em 1894. Mas sua publicação na íntegra foi feita em 1900, após a morte do autor. Eça de Queirós não chegou sequer a completar a revisão final do texto. A tarefa foi realizada pelo escritor Júlio Brandão. 

Ao final da vida, o romancista dedicou-se também à produção de biografias de santos, o que também se opõe ao espírito anticlerical de sua produção anterior. A obra de Eça de Queirós divide-se em três fases: a primeira apresenta características muito próximas do espírito romântico, e cujo melhor exemplo está em Prosas Bárbaras; a segunda mostra traços acentuadamente realistas/naturalistas e na qual o autor produz uma crítica ácida e ferina à sociedade e à burguesia portuguesas. Nessa fase, encontram-se os romances mais combativos e virulentos do autor, entre eles O Crime do Padre AmaroO Primo BasílioA Relíquia. A terceira fase é marcada por um abrandamento da crítica e por um desejo de reconciliação com Portugal. São dessa fase, os romances A Ilustre Casa de Ramires eA Cidade e as Serras, obras por vezes caracterizadas por uma idealização do passado português e por um certo "conservadorismo" ideológico, que surpreendem quando comparados à produção anterior do escritor.


Fonte: http://vestibular.uol.com.br


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