segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Análise 09 - Farsa de Inês Pereira


Escrita em 1523 em resposta a um desafio, a Farsa de Inês Pereira é a peça mais bem-acabada de Gil Vicente, dramaturgo que inaugurou o teatro português. Construída a partir de um dito popular, a peça testemunha o conflito de valores que caracterizou o humanismo em Portugal.

O autor e a época

Durante a Idade Média portuguesa, os tipos de representação mais conhecidos foram os mistérios (encenação de episódios da vida de Cristo e dos santos) e os milagres (apresentação cênica de milagres operados pelos santos e pela Virgem), mas não eram, a rigor, teatro, uma vez que essas composições não utilizavam a fala. 

Quando Gil Vicente começou a escrever, não havia, portanto, modelos portugueses que ele pudesse seguir. Por isso se inspirou no espanhol Juan del Encina e produziu um teatro que, em Portugal, era uma grande novidade, conforme afirmam testemunhos da época: "E vimos singularmente fazer representações de estilo mui eloquente, de mui novas invenções, e feitos por Gil Vicente; ele foi o que inventou isto cá, e o usou com mais graça e mais doutrina posto que Juan del Encina o pastoril começou."

O momento histórico

O Portugal do século XVI é uma nação rica em conquistas ultramarinas, mas deficiente em produção agrícola e manufatureira. Para conseguir abastecer-se internamente a única saída é trazer ouro e prata das viagens além-mar.

A crise econômica gera um descontentamento que ameaça os antigos valores, dissolvendo a aliança entre clero e nobreza, entre mercadores e soberanos. Essa crise é retratada na obra de Gil Vicente pelas personagens que buscam enriquecer a qualquer preço, aproveitando a situação caótica do país.



Europa x Portugal

Em toda a Europa, o século XVI é o momento de ascensão da burguesia, valorização da ciência e do homem e questionamento da Igreja, com a Reforma protestante.

Em Portugal, entretanto, desenvolve-se um humanismo um pouco diferente: as ciências são valorizadas, mas o poder da Igreja e da nobreza não é questionado. Muito pelo contrário: a Inquisição e a Companhia de Jesus são os principais instrumentos da Contra-Reforma, que chega para reprimir a cultura humanista proporcionada pelo contato com outras culturas, decorrente dos descobrimentos.

Religiosidade e reformismo

Gil Vicente vive numa época de transição de valores: os ideais medievais se chocam com a realidade renascentista. Esse choque aparece nitidamente em sua obra. Critica os maus padres, mas poupa a Igreja; critica os maus nobres, mas não questiona o poder real.

Os valores medievais são representados pela forte religiosidade, pela instituição da Igreja, pelos dogmas da fé. Por outro lado, o espírito reformista aparece na crítica aos padres que têm uma vida desregrada e exploram a ingenuidade dos crentes para manipulá-los. Um exemplo disso é o sermão em que Gil Vicente procura explicar racionalmente as causas do terremoto ocorrido em Lisboa, enquanto os padres diziam que era a ira de Deus manifestando-se contra a falta de fé dos cristãos-novos – os judeus convertidos ao cristianismo para escapar da Inquisição. 

Trazendo flashes da vida social para o teatro, as peças conquistam o público pela simplicidade com que mostram as falhas humanas, para que as pessoas possam se corrigir e receber as bênçãos da vida eterna. As peças conquistam o público pela simplicidade e divertem ao mesmo tempo que ensinam.

Anote!
Gil Vicente é importante na literatura portuguesa não só por fazer um retrato da sociedade de seu tempo, mas principalmente por abordar a vida do homem na sua totalidade, desde os problemas domésticos mais corriqueiros até os mais complicados conflitos morais.

O gênero

Gil Vicente é um artista medieval escrevendo em plena Renascença, momento em que as próprias estruturas da arte estavam se transformando. O auto, gênero muito popular até então, caracterizava-se pelo conteúdo simbólico: os atores representavam entidades abstratas de caráter religioso ou moral, como o pecado, a hipocrisia, a luxúria, a avareza, a virtude, a bondade etc. Embora a Farsa de Inês Pereira tenha sido publicada primeiramente como Auto de Inês Pereira, o conteúdo da peça não corresponde às exigências do auto. Gil Vicente criou um novo gênero para o qual não havia um nome na época, a farsa.


Anote! 
A farsa é um tipo de encenação teatral curta que explora situações engraçadas da vida cotidiana, apelando para a caricatura e os exageros, a fim de fazer o espectador rir, mas, ao contrário da comédia, não tem um fundo moralizante.

Desafio: um dito popular

A popularidade de Gil Vicente despertou em seus inimigos dúvidas sobre a autenticidade de suas peças. Em resposta a um desafio do dramaturgo, os invejosos lhe propuseram como mote o ditado popular "mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube". A resposta veio com a Farsa de Inês Pereira, de 1523.

O equilíbrio da ação, a graça das situações e o jogo de contrastes fizeram da peça a mais bem-acabada do teatro vicentino. Apesar de apresentar críticas ao comportamento de vários setores da sociedade, não há nessa obra nenhuma intenção moralizante, além daquela inerente ao próprio mote que deu origem ao enredo.  

Enredo

Inês Pereira é uma jovem sonhadora que se sente entediada com o trabalho doméstico. Despreza Pero Marques, um pretendente rico e grosseiro, em nome de um ideal de marido sensível, mesmo que pobre. Casa-se com Brás da Mata, um escudeiro galante que a conquista com belas palavras, semelhantes às das cantigas de amor.

Antes que mais diga agora
Deus vos salve, fresca rosa,
e vos dê por minha esposa,
por mulher e por senhora.
Que bem vejo
nesse ar, nesse despejo,
mui graciosa donzela,
que vós sois, minha alma aquela
que eu busco e que desejo."

Mas após o casamento, ele a explora e maltrata. Vai para a guerra no Marrocos, onde morre, depois de se revelar um covarde. Com essa experiência, Inês percebe que a realidade funciona muito mais na base da conveniência do que da idealização e põe em prática a máxima "mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube".   

"Agora quero tomar,
pera boa vida gozar,
um muito manso marido.
Não no quero já sabido,
pois tão caro há-de custar."

Aceita o pedido de casamento de Pero Marques e passa a explorar a liberdade e a dedicação que ele lhe dá, chegando a, literalmente, carregá-la nas costas para atravessar um rio.   

Anote!
Com essa peça, Gil Vicente quer mostrar que a sociedade da época é corrupta: a experiência de Inês Pereira mostra que o mundo é dos espertos e quem se dá bem são os mais hábeis na manipulação do contraste entre ser e parecer, entre essência e conveniência.

Personagens

Inês Pereira → a personagem central dessa farsa apresenta-se de duas maneiras distintas, segundo suas experiências. Primeiro, enquanto é solteira, gosta de se divertir, é alegre e pouco afeita aos afazeres domésticos. Não dá importância ao luxo, preferindo uma vida prazerosa, mesmo que pobre. 

Depois que se casa com o Escudeiro e descobre quem ele realmente é – a essência por trás da aparência –, Inês se vê obrigada a reavaliar seus ideais. O resultado dessa sua desilusão é expresso no modo como trata Pero Marques, seu segundo marido. 

Pero Marques (um Parvo) → representa o asno servil e é a personagem cômica da peça, por seu caráter estúpido, ingênuo e honesto. 

Brás da Mata (um Escudeiro) → encarna os oportunistas, abundantes na época de Gil Vicente, e é a personificação do contraste entre aparência e essência.

Lianor Vaz (uma Alcoviteira) → essa personagem se diferencia das demais alcoviteiras do teatro vicentino, na medida em que se transforma numa confidente honesta e bem-intencionada. É uma figura com moral apreciável e bons conhecimentos na "arte" de promover casamentos. Assim como em Pero Marques, sua honestidade e boa fé se aliam à falta de agudeza crítica.

Mãe de Inês → luta pela felicidade da filha iludida, mas, tendo dado seus conselhos, deixa -a aprender por si mesma, como mostram estes versos, logo após o casamento de Inês com o Escudeiro:

"Mãe Ficai com Deus, filha minha,
não virei cá tão asinha.
A minha bênção hajais.
Esta casa em que ficais
vos dou, e vou-me à casinha."

Dois judeus casamenteiros (Latão e Vidal) → aparentam uma atitude bajuladora, mas na verdade suas afirmações constituem críticas severas e justas tanto a Inês quanto ao Escudeiro. Conhecem bem os defeitos do pretendente que arranjaram para a moça, mas também sabem da preguiça, da vaidade e da leviandade de Inês. Por isso, zombam dos dois, expondo seus defeitos. 

Moço → é uma versão plebeia do próprio Escudeiro e é por ele que se conhecem os sentimentos e as intenções de Brás da Mata. Após a partida do patrão para o Marrocos, Inês fica aos cuidados do Moço, que a vigia o tempo todo.

Moços e moças amigos de Inês → Fernando e Luzia são uma espécie de ideal de vida, encarnam a bondade e a pureza, a simplicidade e a ternura. Entretanto, é a morte e o desencanto presente em suas canções que desperta um vago pressentimento em Inês, anunciando o futuro que a espera.

Um Ermitão → essa personagem serve como pretexto para mostrar concretamente o "asno" transportando Inês. Devia haver um caminho a percorrer e, como os ermitães viviam retirados, a verossimilhança era preservada. Além disso, por se tratar de uma jornada religiosa, o marido pode acompanhar Inês sem desconfiar de suas reais intenções. Gil Vicente serve-se ainda dessa personagem para criticar os maus padres de sua época, corrompidos pelos interesses materiais. Ao grupo deles pertence o clérigo que teria assediado Lianor Vaz. 

Estrutura

Construída a partir do ditado "mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube", a peça incorpora em sua estrutura a simetria existente entre os dois termos dessa comparação: Pero Marques encarna o asno que carregará Inês, enquanto o Escudeiro é o cavalo que a derruba.

Para pôr em cena esses elementos, Gil Vicente utilizou na caracterização de Pero Marques aspectos que o aproximam de um asno: é parvo, teimoso, deselegante e servil. O Escudeiro, ao contrário, assemelha-se ao cavalo, pois se apresenta como um nobre e elegante cavaleiro. Entretanto, essa semelhança se esgota na aparência, pois quaisquer outras características que se poderiam atribuir aos cavalos (como lealdade, generosidade, valentia) ele não tem: é mentiroso, cínico, preguiçoso e covarde.

Pode-se dizer que Lianor Vaz reforça o grupo de Pero Marques, a considerar seus valores: não tem interesses financeiros, é honesta, sensata e preocupada com o futuro de Inês, ao contrário dos judeus Latão e Vidigal, que são desonestos, mentirosos, mercenários e indiferentes ao futuro da moça.

Para seguir à risca a comparação de superioridade que subjaz ao enredo ("mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube"), é necessário mostrar que Pero Marques tem valores autênticos, os valores medievais, enquanto Brás da Mata se move por interesses materialistas, como os que predominam na época de Gil Vicente. 

O dito popular é cumprido literalmente nessa farsa: o asno não é melhor do que o cavalo, mas se torna preferível na medida em que não oferece perigo.

Recursos linguísticos

a) A ironia, que é utilizada na peça como instrumento de crítica e motivadora do riso, aparece em inúmeras formas, ora as palavras expressando seu sentido oposto, ora jogando com o duplo sentido, ora acentuando a desproporção entre uma ação e sua finalidade. São exemplos de ironia nessa farsa:


"Inês - Mas eu, mãe, são aguçosa e vós dai-vos de vaga

Ou seja, Inês tem vontade de se casar e a mãe, que a chama de preguiçosa, é quem tem resistido em consenti-lo, dados os ideais de marido expressos pela filha.


"Mãe - Mana, conhecia-te ele?

Lianor -Mas queria conhecer-me!"

Aqui, o efeito cômico é construído a partir do duplo sentido do verbo conhecer: saber e relacionar-se sexualmente. 


"Mãe - Que siso, Inês, que siso tens debaixo desses véus."

A Mãe refere-se ao juízo de Inês, ironicamente, para reforçar a falta de juízo da filha. 

"Vidal  [...]
escudeiro cantador
e caçador de pardais,
sabedor, revolvedor,
falador, gracejador,,
afoitado pela mão,
e sabe de gavião...
Tomai-o por meu amor."

Nessa fala de Vidigal, que apresenta o pretendente a Inês, é mais uma vez explorado o duplo sentido. Se, por um lado, o fato de ser afoitado pela mão pode ser positivo, indicando sua valentia, por outro lado expõe sua tendência a se apropriar indevidamente do que não lhe pertence. Se ele sabe de gavião, é porque é bom caçador ou porque é desonesto, uma ave de rapina.

"Inês Mostrai cá, meu guarda-mor,
e veremos o que é que vem."

Aqui, a ironia de Inês Pereira se dirige ao Moço, seu miserável carcereiro. Chamando-o de guarda-mor, tratamento que então era dispensado aos fidalgos da Guarda Real, Inês joga com a desproporção entre a denominação que lhe dá e a real condição do Moço. 

b) Cantigas que resumem ou comentam a ação, ou exprimem o estado de espírito de quem as canta.


"Mal herida va la garça
enamorada,
sola va y gritos dava.
A las orillas de um rio
la garça tenia el nido;
ballestero la ha herido
en el alma;
sola va y gritos dava."

Essa cantiga aparece na festa de casamento de Inês, cantada por seus amigos. Tem a função de resumir os acontecimentos, além de prever um futuro infeliz: a garça simboliza a própria Inês, caminhando triste e sozinha, depois que um caçador, o Escudeiro, destruiu seus ideais.


"Inês - Quem bem tem e mal escolhepor mal que lhe venha não s'anoje."

Essa cantiga traduz o estado de espírito de Inês Pereira depois da desilusão com o marido que escolhera, quando tinha a possibilidade de casar-se com Pero Marques: responsável pela opção que fizera, agora não pode reclamar. 

c) O modo de falar das personagens é o principal recurso utilizado por Gil Vicente para representar a oposição entre os mais elevados valores morais e os novos valores materialistas.

• A oposição entre o mundo idealizado por Inês e a conveniência pregada pela mãe está expressa na fala de cada uma. Inês, que apesar dos conselhos da mãe confia nos próprios ideais, utiliza palavras ligadas à diversão ("folgar", "prazer"), enquanto a mãe emprega um vocabulário que denota obrigação ("tarefa", "preguiçosa").

• A fala de Pero Marques evidencia seu caráter simplório e honesto, que é ridicularizado por Inês, ao passo que o Escudeiro, dizendo belas palavras (mas sendo mau caráter), é privilegiado na escolha de um marido para a moça. Ou seja, o modo de falar também serve ao jogo da aparência versus essência. 

Vida e obra de Gil Vicente

Não existem documentos que comprovem com segurança o local e a data de nascimento e morte do dramaturgo português Gil Vicente. Mas todas as evidências indicam que ele nasceu em Guimarães, em 1465, e morreu em Évora, em 1537, onde foi sepultado no Mosteiro de São Francisco. Teria sido ourives de dona Leonor, a Rainha Velha, e pelos seus conhecimentos teológicos e filosóficos é provável que tenha recebido formação intelectual, apesar da origem popular (ou burguesa: também não se sabe ao certo a que classe social pertencia).

Como organizador oficial dos festejos da Corte, Gil Vicente desfrutava de um prestígio que fazia dele mais do que um mero bobo-da-corte. E, aproveitando esse prestígio, utilizou seu teatro para atacar os vícios de todas as classes sociais, incluindo as pessoas do rei e do papa.
O escritor presenciou e documentou as profundas transformações que o Renascimento e a expansão ultramarina trouxeram ao Portugal de sua época. Por isso é considerado o grande repórter do século XVI.

Casou-se duas vezes, primeiro com Branca Bezerra e depois com Melícia Rodrigues. Dos dois casamentos, Gil Vicente teve cinco filhos, dois dos quais, Paula Vicente e Luís Vicente, fizeram em 1562 a compilação de todas as obras do pai.

Em 34 anos de trabalho, escreveu 47 obras, entre as quais estão o Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação (1502), apresentado por ocasião do nascimento de d. João III, Auto da Índia (1509), O Velho e a Horta (1512), Quem Tem Farelos? (1515), Auto da Barca do Inferno (1517), Auto da Alma (1518), Farsa de Inês Pereira (1523) e Auto da Lusitânia (1532).

Fonte: http://vestibul
ar.uol.com.br

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