segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Análise 04 - Dom Casmurro


Desde seu lançamento, em 1899, Dom Casmurro, de Machado de Assis é um sucesso de crítica e de público, considerado uma das obras-primas da Literatura em Língua Portuguesa.

Para muitos críticos, a obra de Machado de Assis poderia ser dividida em dois momentos bem distintos: as obras de juventude, com forte influência do Romantismo, e seu progressivo amadurecimento até chegar ao Realismo de suas obras de maturidade. Entre estas, as mais destacadas e consideradas são Memórias Póstumas de Brás Cubas(1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899)

Um grande romance de uma história banal 

A história de Dom Casmurro pode ser facilmente localizada, datada e resumida: no Rio de Janeiro do Segundo Império – a primeira cena narrada é claramente datada: "[...] o ano era de 1857"; capítulo 3 ("A Denúncia") –, Bentinho, filho de um já falecido fazendeiro e deputado, vê-se às voltas com a iminência de ter de cumprir a promessa que sua mãe, D. Glória, fizera quando de seu nascimento: torná-lo padre. O menino percebe que isso o separaria de sua "primeira amiga": a menina Capitolina, ou simplesmente Capitu, filha de um modesto funcionário público – Pádua, seu vizinho. Após longa sucessão de artimanhas para libertá-lo da promessa feita, Bentinho e Capitu casam-se numa tarde chuvosa de março de 1865. O casamento não dura muito: o ciúme de Bentinho leva ao seu esfriamento e inevitável dissolução. O casal finge uma viagem à Europa; lá ficarão Capitu e o filho do casal, Ezequiel. Capitu morrerá sem voltar ao Brasil. Ezequiel voltará, já moço, para uma breve visita ao pai que, velho e casmurro, irá recebê-lo friamente. Pouco tempo depois, o rapaz parte para terras distantes em uma viagem de estudos, durante a qual também morrerá. Uma história banal – banalíssima, como diria o agregado José Dias, amigo dos superlativos. 

Anote!
Não é a história contada que faz de Dom Casmurro uma grande obra literária. O modo como é contada é muito mais importante que a história em si, ou seja, o romance é mais importante que a história que ele conta.

O modo de contar: o Realismo de Machado

Se o modo de contar é mais importante que a história em si, nossa atenção deve concentrar-se no foco narrativo por meio do qual essa história é contada. E, aqui, é fundamental não confundir a voz que fala no romance – o narrador – com a voz do autor. Não podemos esquecer que tudo o que está na obra passou por um complexo processo de invenção. O autor nos apresenta o mundo e nos conta uma história, atribuindo aos elementos que compõem sua obra (principalmente o foco narrativo) determinados valores e significados que devem ser percebidos por quem pretende compreender o texto. 

Para lembrar
No Realismo de Machado de Assis, é fundamental distinguir o autor e o narrador. O modo de apresentação do "real" instituído pela ficção é mais importante do que esse "real" propriamente dito, gerando uma tensão entre a percepção que o narrador tem do real e o suposto real em si.


O Realismo de Machado de Assis é, talvez, o Realismo das diversas formas de percepção do real. Daí a importância que o foco narrativo assume em muitas de suas obras, sempre subordinando o que se conta à condição psicológica de quem conta. Aí está a chave para a compreensão de Dom Casmurro.


O estilo da narrativa

Algumas cenas de Dom Casmurro revelam temas significativos e recorrentes na obra de Machado de Assis, além do estilo utilizado na construção de sua narrativa. 

O capítulo 3 é o ponto de partida de toda a trama da primeira parte do romance. José Dias, em meio a uma reunião familiar, cobra de D. Glória, mãe de Bentinho, uma posição a respeito da iminente internação do menino em um seminário de padres – uma promessa feita quando o garoto nasceu. Faz isso porque percebera a aproximação cada vez mais intensa entre o menino e a filha do vizinho, Capitu. Bentinho, que se escondera atrás da porta, ouve toda a conversa. O narrador comentará após uma longa sequência de capítulos: 

"Verdadeiramente foi o princípio da minha vida."


Anote!
A cena, além de indicar o nó da narrativa por muitos capítulos, demonstra um significado recorrente na literatura machadiana: o indivíduo que se defronta com o que socialmente se espera dele e o conflito que daí surge.


Bentinho/narrador dirá, ao retomar o fio dos acontecimentos daquela tarde:

"Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às saias dela, mas não me ocorria nada entre nós que fosse deveras secreto. [...] Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a mim mesmo."

Digressões machadianas

Uma das técnicas utilizadas por Machado de Assis em suas obras de maturidade é a digressão: interrompe-se o fluxo narrativo, o narrador dirige-se ao leitor e comenta algo que aparentemente desloca o assunto de que se vinha tratando. No caso de Dom Casmurro, esse artifício cumpre alguns propósitos complementares: 

• Parece querer disfarçar ou atenuar, pelo humor implícito, a importância e a gravidade do projeto narrativo que está em curso. 
• Também nos lembra, pela interrupção explícita, que a narração de tudo o que foi vivido e está sendo apresentado ao leitor é posterior e, por isso, está sujeita ao fluxo do pensamento e à perspectiva do narrador/Bentinho, que revê sua história. É uma maneira sutil de confirmar a importância do foco narrativo. 

Isso pode ser visto no capítulo 9, "A Ópera". Um velho tenor expõe ao narrador sua teoria: "A vida é uma ópera e uma grande ópera". Da exposição minuciosa resulta a ideia de que a vida que vivemos na Terra não passa da encenação de uma grande peça musical, um drama cuja história foi criada por Deus, sendo música e encenação assinados por Satanás. Daí "alguns desconcertos", repetições e imperfeições variadas que empanam o brilho da virtual obra-prima divina.


Anote!
Aceitando a teoria do tenor, o narrador parece querer chamar a atenção do leitor para a inevitabilidade dos acontecimentos que irá narrar ("Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor...", clara referência aos futuros – e supostos – triângulo amoroso Bentinho/Capitu/Escobar e quarteto Bentinho/Capitu/Escobar/Sancha). No lugar do reconhecimento do papel ativo do personagem, a metáfora teatral agenciada pelo narrador sugere a inexorabilidade de um destino já traçado. 


Narrador: o personagem central

Machado inventou, antes de tudo (antes de uma história, poderíamos dizer), uma voz narrativa, um ponto de vista por meio do qual se narra uma história. Essa voz é a do próprio personagem central, Bento de Albuquerque Santiago, que irá narrar, já velho (e apelidado significativamente de "Dom Casmurro"), a história de sua vida, começando por sua infância e adolescência (quando era chamado de Bentinho). O narrador, portanto, é o personagem central modificado pelo tempo. Com esse artifício, Machado faz dois deslocamentos em relação ao suposto "real": 

• Como o narrador é um personagem, toda a narrativa está condicionada à sua própria visão dos acontecimentos. 
• O personagem faz a sua narrativa em um tempo muito posterior ao dos acontecimentos narrados.

Para lembrar
A compreensão de Dom Casmurro passa por conhecer o personagem que narra e o ponto de vista por meio do qual faz sua narrativa. Ou seja: entender Dom Casmurro é entender o modo pelo qual Machado de Assis cria o personagem Bento de Albuquerque Santiago que, como Dom Casmurro, narra sua vida enquanto Bentinho. Tudo o mais está subordinado e tem sua existência ficcional condicionada a esse sistema narrativo. 

O enquadramento da narrativa e do narrador

Um apelido e uma casa enquadram o que se vai narrar. O livro não começa pela história propriamente dita, mas por dois capítulos que situam e explicam o ponto de vista que enquadrará toda a narrativa. Ainda que adotem um tom quase despretensioso, esses capítulos apresentam dados fundamentais para a compreensão do romance. Neles, o narrador nos conta como recebeu o apelido de "Casmurro", título do romance, e as circunstâncias que o fizeram contar, por escrito, sua história. 

O apelido, dado por um conhecido do bairro que insistia em recitar versos para o narrador semi-adormecido no trem, serve de caracterização do personagem/narrador, a ideia de "homem calado, metido consigo", segundo o que o próprio narrador explica da alcunha recebida.


Anote!
De fato, o romance parece fruto de alguém que, a partir de certa altura da vida, limitou sua participação e contato com o mundo externo, passando a investir sua energia psíquica e disponibilidade emocional no seu mundo interior. Uma introspecção que levaria à narração para que esta pudesse, segundo nos diz, "me reconstituir os tempos idos".


O fato de reproduzir na velhice a casa em que passou sua infância e adolescência também serve de enquadramento e caracterização do personagem. "O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência." 

Refazer a casa tem o significado de refazer, narrando, o que foi vivido. Mas a vida vivida, ao contrário da casa, parece não aceitar tal proposta de reconstrução e o narrador nos diz que "se o rosto é igual, a fisionomia é diferente" e acrescenta: "falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo". 

Objetivo expresso pelo narrador

Embora Dom Casmurro afirme que o propósito da narração que inicia é "assentar a mão para alguma obra de maior tomo", fica claro que se trata de um projeto mais vital do que o mero exercício de estilo, mais existencial do que o simples treino retórico. No capítulo 68, "Adiemos a Virtude", afirmará: 


"Ora, há só um modo de escrever a própria essência, é contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida que me vai lembrando e convindo à construção ou reconstrução de mim mesmo."


Para o narrador, por enquanto, trata-se de recuperar uma época na qual foi feliz e em que descobriu o amor. Daí o tom de reminiscência lírica, de evocação do que se seguirá. Resta saber se ele terá condições de fazer isso. "Escrever a própria essência", "contá-la toda" ou se a busca por conhecer o vivido não será traída ao longo do percurso.

• A segunda parte, bem menor do que a primeira (do capítulo 98 ao capítulo 146), narra o casamento de Bentinho e Capitu, o nascimento de Ezequiel, as crescentes suspeitas do narrador sobre a fidelidade da esposa (que atingirão seu ápice quando da morte de Escobar) e o consequente exílio de Capitu e Ezequiel.

Essa parte opera como uma desmontagem da primeira, na medida em que o processo psicológico destrutivo, que aos poucos toma por inteiro o narrador, obscurece significativamente a evocação lírica juvenil da primeira parte. O próprio narrador parece ter consciência da estrutura do livro, uma vez que comenta, metalinguisticamente  no capítulo 67, "A Saída":


"[...] Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego quase ao fim do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em resumo."


Concluído o romance, toda a parte inicial adquire outra feição. Pode-se, então, perceber a construção intencional da figura de Capitu como a montagem de uma armadilha narrativa. Certas características sugeridas na primeira parte têm o papel de apoiar a traição e o adultério que o narrador da segunda parte quer nos fazer crer. Os propósitos do narrador poderão então ficar esclarecidos. 


Capitu: a construção de um personagem 

A primeira parte do romance relatará basicamente as tentativas de Bentinho (gerenciadas por Capitu e tendo por coadjuvante José Dias) de livrar-se do seminário.

Anote!
Ao longo desse percurso, o propósito da linha narrativa de Bentinho parece ser o de caracterizar inequivocamente Capitu como uma jovem voluntariosa, ativa, racional, calculista, que lida facilmente com situações constrangedoras e que é disposta a tudo para conseguir seus objetivos.

Carta de Machado de Assis a sua mulher Carolina.

Nesse retrato cresce a imagem de Capitu construída por José Dias – "olhos de cigana oblíqua e dissimulada"–, que será corrigida por Bentinho,num lance que aprofunda o caráter enigmático e talvez destrutivamente sedutor que este quer atribuir à companheira, para "olhos de ressaca". Uma imagem que lhe interessa compor no sentido de confirmar o posterior – e suposto – adultério, como se pode ver no capítulo 31, "As Curiosidades de Capitu": 

"Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda não o disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição."


Toda a caracterização de Capitu por Bentinho parece fazer parte de um projeto narrativo interessado, que tem seus objetivos e que se rege por uma sucessão inexorável de evidências interligadas. É o que nos diz no capítulo 18, "Um Plano", quando afirma:

"Conto essas minúcias para que melhor se entenda aquela manhã da minha amiga; logo virá a tarde, e da manhã e da tarde se fará o primeiro dia, como no Gênesis, onde se fizeram sucessivamente sete."


Deve ser destacado também o retrato psicológico que o narrador faz de si mesmo – o caráter hesitante, passivo, emotivo e fraco de Bentinho –, como a querer marcar o contraste com sua companheira. Fica evidente, também, a forte tendência imaginativa de Bentinho (exposta no capítulo 39, "O Imperador", e principalmente no capítulo 40, "Uma Égua").

Anote!
Essa tendência imaginativa será fundamental para pôr em evidência o possível engano do narrador em relação ao adultério de Capitu.

Adultério: sim e não 

As suspeitas em relação a Capitu começam a surgir já na primeira parte, com uma maliciosa referência feita por José Dias (capítulo 62, "Uma Ponta de Lago"), que "denuncia" ou revela – como já fizera em relação ao amor –, o ciúme que o próprio Bentinho não alimentara até então. Os capítulos que narram a breve vida de casados de Capitu e Bentinho poderão ser lidos com proveito pelo leitor se ele puder descobrir neles o avesso da história que se conta. Assim, em contrapartida à sucessão de evidências de adultério que o narrador nos relata (a semelhança física entre Ezequiel e Escobar, a presença de Escobar em casa de Bentinho quando este não está, as lágrimas e a explosão emocional de Capitu no enterro de Escobar etc.), o leitor poderá detectar nessas mesmas cenas elementos do processo psicológico de ciúme doentio que, aos poucos, toma conta de Bentinho. Não será difícil também procurar o avesso dessa emoção: a inocência de Capitu. De qualquer modo, seria igualmente inadequado afirmar categoricamente a hipótese do não-adultério.

Para lembrar
Na verdade, o que interessa atentar nesse romance de Machado de Assis é a essencial ambiguidade que o estrutura. E, mais importante do que listar os argumentos a favor ou contra o adultério de Capitu, é perceber o processo de construção da suspeita de Bentinho.


"O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum incidente."


O que se pode afirmar pela leitura crítica é que o narrador montou a narrativa de modo a fazer caber na Capitu de Matacavalos a Capitu adúltera da praia da Glória e soube fazer dessa hipótese uma conclusão certeira que, de algum modo, talvez lhe alivie
a culpa: 


"[...] a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve!"


Vida e obra

Um escritor consagrado

Machado de Assis
Considerado por muitos como o maior escritor brasileiro, Joaquim Maria Machado de Assis teve uma existência relativamente estável e conheceu em vida o prestígio e a fama que lhe cabiam. Foi um dos fundadores, em 1896, da Academia Brasileira de Letras e eleito seu presidente vitalício. Ao morrer, em 1908, recebe honras fúnebres de chefe de Estado. 

Nada poderia contrastar mais vivamente com seu nascimento, em 1839, no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, e com sua infância de menino órfão e pobre. Entre nascimento e morte, Machado percorreu um duro caminho de quem se faz pelas próprias mãos – mulato pobre do subúrbio, ele se transformaria em um dos mais respeitados intelectuais da Corte. Pelo que indicam os registros, Machado de Assis não frequentou a escola, embora tivesse aprendido a ler antes dos 10 anos. Ainda criança, vendeu doces na rua para ajudar a sustentar a casa. Caixeiro de uma livraria, tipógrafo e revisor foram algumas profissões que exerceu antes de se tornar jornalista e escritor. 

A estabilidade econômica, porém, veio de outras fontes. Como uma boa parcela da intelectualidade brasileira da época, Machado ingressou no funcionalismo público. Chegou a fazer carreira, foi oficial-de-gabinete de ministro e diretor de órgão público. Em 1889, ano da Proclamação da República, dirigia a Diretoria do Comércio. Nessa época, já era um escritor consagrado. 

A carreira de Machado como escritor contou com uma outra base sólida: o casamento estável com Carolina Novaes, uma portuguesa um pouco mais velha que o escritor.

Uma obra em dois tempos 

Seu primeiro texto publicado foi o poema "Ela", na revista A Marmota Fluminense, em 1855, e seu primeiro livro de poemas, Crisálidas, é de 1864. Em 1870, publica mais dois livros de poemas, Falenas e Contos Fluminenses. Machado de Assis começa a publicar romances no ano seguinte: Ressurreição, ainda sob influência do Romantismo.

A parte mais significativa de sua obra – a chamada obra da maturidade – começa a aparecer entre 1881 e 1882, com a publicação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas e dos contos reunidos em Papéis Avulsos. Nestes livros, e mais tarde em obras-primas como Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899), desenvolve uma prosa realista, hábil em compor complexos retratos psicológicos e que se distancia tanto da idealização romântica quanto dos exageros cientificistas do Realismo/Naturalismo. Em 1904, a vida de Machado de Assis é abalada pela morte da esposa, sua companheira por 35 anos. Nesse mesmo ano, Esaú e Jacó é lançado. No ano de sua morte, 1908, é publicado Memorial de Aires

Cultuado em seu tempo (e até hoje) como escritor "clássico", representante máximo de nossa "boa Literatura", Machado de Assis soube, como nenhum outro escritor brasileiro, revelar os meandros da alma humana e combater, pela ironia sutil, as mazelas de nossa sociedade, ainda colonial, escravocrata e autoritária.

Fonte: http://vestibular.uol.com.br


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